14 de setembro de 2003

O JOGRAL DAS FONTES

Os entrevistados parecem obedecer a uma lógica que só existe dentro da cabeça dos jornalistas. Eles “concordam” uns com os outros nos textos forçados, como se fizessem parte de um conjunto vocal que recita declarações idênticas ou complementares. E por coincidência espantosa, eles sempre “concluem” no final das matérias.

MEMÓRIA E ENCANTAMENTO – Hoje é domingo, precisamos conectar com algo muito acima de nós. Vou transcrever um trecho (curtinho) de Proust, do capítulo Combray, do livro No Caminho de Swan, de sua obra monumental Em Busca do Tempo Perdido, tradução de Mario Quintana: “Mas quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, - sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, - o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.” A França tem uma identidade definitiva, entre tantas outras: o poder encantatório de sua cultura. Servem como exemplos, além de Proust, Saint-Exupery em Terra dos Holmens e no seu poema O Pequeno Príncipe, tão amado quanto injustamente mal-afamado. No mesmo caminho, o filme “O fabuloso Destino de Amélie Poulain”, que aborda a solidariedade anônima, a timidez que procura superar-se pela tocaia amorosa e Paris pintada sobre a fotografia. O diretor do filme, muito politicamente correto, fala mal da sua obra dizendo que é preciso ter cuidado, pois Paris não é a mesma do filme. Esquece-se do encanto da cultura a qual pertence (talvez sinta vergonha do que faz parte dele poderosamente). Basta a cena do metrô vazio, com Amélie encontrando o cego com um toca-disco no colo. O filme fez o maior sucesso, o que, para muitos, depõe contra ele. Pois nem quero saber: gosto de Saint-Exupery e de Amélie Poulain, assim como gosto de Godard. Gosto da França. Quem não gosta?

TÍTULOS – “Nem tambores nem clarins “ era o título que meu amigo Wagner Carelli gostaria de usar em alguma matéria sua, o que nunca aconteceu, claro, já que Carelli, além de um magnífico debochado, é mestre da linguagem e quando decide escrever, o País treme. Mas Wagner será assunto de um perfil futuro, portanto, vamos nos concentrar nos títulos. Não sou fã ardoroso dos títulos apelativos, tipo Notícias Populares, como o clássico “Cachorro faz mal à moça”, que se referia à internação hospitalar de alguém que arriscou em comida de rua. Nem dos que clonam exaustivamente títulos literários, como o já citado aqui “Crônica de uma morte anunciada”, que dá deu para bola de tanta repetição. Título hoje, por pressão dos manuais, obedece a hábitos horrorosos. Está cheio de “quer” e “diz” e verbos intragáveis como “sinalizam “ ou “alavancam”. O melhor título que eu conheço foi feito pelo Sérgio de Souza no jornal semanal do Samuel Wainer, Aqui, São Paulo, sobre uma exposição de pintura do ex-presidente Jânio Quadros, que voltava de longo exílio voluntário: “Jânio? Quadros?” era o título magistral. O Aqui, São Paulo existiu entre 1977 e 1979, época da anistia. Foi quando conheci o Samuel Wainer, que será também pauta de um perfil de sábado (hoje estou cheio de promessas). “A volta do Setembro Negro” é um dos meus títulos favoritos da Veja, com a capa mostrando a foto granulada de um terrorista com capuz. Não parece ser um grande título, mas mexe comigo, assíduo espectador dos seriados nas matinês dos anos 50. Para variar, um título dos meus, que fiz quando estava na revista Senhor, do Mino Carta (outro que terá um perfil aqui na coluna) dos anos 80. Foi na seção de Ciência e Tecnologia e a matéria era sobre o satélite brasileiro que estava sendo lançado: “O Brasil vai para o espaço”. Este título foi bastante copiado, inclusive na própria Senhor (quando aproveitaram, sorrateiramente, umas férias minhas). Mas é de minha lavra e tenho dito. Outro que eu gosto fiz para a revista da Fiesp na inauguração do centro cultural : “Às artes, cidadãos”. Já que ninguém comenta esta coluna, por que vocês não enviam seus títulos favoritos? Vamos, participem, trabalhem um pouco. Forças!

TODOS CONCLUEM - A falta de filosofia no segundo grau tem sido o motivo das dificuldades de costura nos textos jornalísticos. Como não há formação filosófica, empilham-se declarações e o máximo que se consegue é fazer uma fonte concordar com a outra, ou, para fechar a matéria, concluir no ponto final. É muito simples: vocês conhecem alguma empresa de comunicação com biblioteca? E com bibliotecário(a) contratado(a)? Uma vez um repórter formado em comunicação me disse que jamais tinha lido um livro. Emprestei Sagarana, de Guimarães Rosa. Um ano depois, pedi de volta. Ele não tinha lido. E isso que é um livro de contos, poderia pelo menos terminar de ler uma das histórias. Num desses contos maravilhosos, O Duelo, Rosa escreveu o mais belo desfecho existente na literatura: “Depois, morreu”. Isso sim é que é final de texto. Poderia servir de lição para os repórteres.

RETORNO – Este pé de coluna não vai mais se chamar Atenção, já que não temos alto-falante. O Retorno de hoje é a bronca que eu levei do meu irmão Luís Carlos, que tem doutorado em Qualidade de Software pela USC, dos Estados Unidos. Ele reclamou que o título da minha nota sobre ele foi “Redator PC” e que isso estaria gerando deboches entre colegas. Avisei que eu é que estava envolvido com o extinto software, mas pensando melhor, até que fui muito generoso, pois poderia lembrar sua época de cartões perfurados. Mas fica o registro: Luís Carlos é doutor em Tecnologia de Informação e dá de dez em todo mundo. O problema é que, com a bronca, ele perdeu o direito a um pastel de queijo grátis, pois o brinde é apenas para quem faz comentário favorável.

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