13 de dezembro de 2003

SOLDADO, LAVRADOR, POETA


Nei Duclós

O texto exausto se recolhe e no seu sono esquece a porta aberta, por onde entra a poesia. O poema pode ser noturno, ou assombrar a sesta antes das duas. É quando a palavra se supera, e não se explica. Quando se prosta, o beija-mão da prosa aprende que o verso é criação divina. O autor apenas sonha, de janela escancarada para o dia.

Ninguém gosta de partir sem deixar marca
Coloquei ferro no gado e azeitei armas
Parti menino com um canhão no ombro
Vi generais fugirem a cavalo pelo barro
E soldados trocarem de farda em plena luta
Vi bandeiras demais e a gritaria me cansou
Voltei para ver minha mãe que lá estava
Cuidando das crianças e da terra
Apareci com barba ainda rala, mas antigo
E decidi ficar para consertar a cerca

Ninguém gosta de ficar sem uma bala
À noite eu perdi o sono ouvindo passos
Eram javalis de palha, roendo aldravas
As palavras me escapavam como a água
Percebi que havia um morro derrubado
E fui tirar satisfações no povoado
Fui então atirado numa vala, porque bebi
E não sabia distinguir mais nada

Voltei a pé, contando os passos
Recebeu-me Luiza, aquela que não fala
Levou-me ao catre e interrompeu a faina
Só para me colocar o corpo enxuto e claro
Casei por um motivo nobre, o amor veio depois
Quando ela me deu filhos e pude então ver Deus

Só fiquei intrigado um dia quando uma tropa
que eu vi morrer voltou cruzando o túnel
Os fuzileiros vieram morder meus calcanhares
Mas eu não dei a ordem que os levou para a tumba
Um cão me farejava, quis rasgar minha alma
Fui para dentro de casa e pela primeira vez rezei
Na manhã seguinte a chuva inundou a colheita
E vi-me pobre novamente

Agora vou de novo para a guerra
Nenhum general vai fugir, não vou deixar
Voltarei com espólio, voltarei com prata
Quero semear o trigo onde hoje há pedra
Venham me dizer que não devo partir
Ninguém gosta de viver sem cravar a lança
E fazer um sulco na província morta

Sou soldado, lavrador, poeta
Tentem me tirar o sono, estarei alerta
Ainda parto em dois essa quimera
que fustiga a janela feito musa
Sou o duro amor que peita o inverno
Não faço flor nem fruto, faço trigo
Vendo no mercado o que liberta

RETORNO - Fiz este poema em parte inspirado em Sonhos, de Akira Kurosawa.

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