31 de março de 2004

HOMENS DE PALAVRA


A ditadura faz quarenta anos e seus crimes não serão esquecidos. Mas é preciso que o tempo nos ensine alguma coisa. Uma dessas lições é o resgate da nossa confiança nas Forças Armadas brasileiras. O golpe não foi apenas militar. Foi também civil. Quem deu sustentação foram os governadores (e os eleitores) de direita do Rio, Minas, São Paulo e Rio Grande do Sul. O que precisamos ter em mente nesta data, de 31 para primeiro, é que os militares brasileiros cumpriram a sua palavra e nunca mais ameaçaram voltar ao poder.

MEMÓRIA – Assim como não podemos identificar a Alemanha com o nazismo – que foi um momento da Alemanha e não sua totalidade institucional em todos os tempos – não podemos ficar repisando sobre a nefasta presença militar na política brasileira a partir de 64, a não ser como objeto de estudo, nunca como revanchismo. Foi uma parte delas que derrubou o presidente, haja vista a quantidade de punições contra quadros que não concordaram com o movimento. Já passou tempo demais (desde 1985) que os militares saíram do Planalto. É hora portanto de assestar o tiroteio contra os verdadeiros inimigos: os que continuam mandando no país com velhos instrumentos, mantendo a nação sob a tacão da economia colonial e da corrupção política. Com o fim do período de presidentes militares, as Forças Armadas reforçaram sua identidade de instituição sólida de defesa da Pátria. Tive a oportunidade de debater com historiadores militares na USP. Não existem pessoas mais gentis, com aquela elegância que o ascetismo promove em gente determinada. Há hoje um apelo dos historiadores militares para que acessem seus arquivos, seus acervos e contem suas histórias. É claro que os dois últimos presidentes civis, FHC e Lula, mantiveram sob cerco cerrado importantes documentos da nossa História, mas isso não é culpa dos militares. Senti que eles lamentam a campanha maciça contra o heroismo nacional, o que considero uma tragédia sem fim. Os cidadãos do país precisam sentir orgulho dos seus heróis. Quem arriscou a vida merece no mínimo respeito. A par disso, há uma gigantesca ignorância sobre o Brasil em guerra. Nada se sabe sobre a guerra da Independência, por exemplo, com poucas exceções. Até hoje é costume abraçar a velha teoria da ruptura amigável com Portugal, que o digam os 400 bravos que tombaram numa batalha do Nordeste e outras centenas que morreram lutando na Bahia, Pernambuco e Maranhão, como conta o historiador José Honório Rodrigues na sua coleção de livros sobre a Independência.

FERIDAS - Mas isso não é nada. Pouco se sabe sobre a revolução de 1924, e até hoje não houve um evento de congraçamento pós-guerra (como aconteceu entre japoneses e americanos) entre paulistas e gaúchos, que se mataram mutuamente em 1932. Ass feridas estão ocultas, mas abertas, e isso deve-se à falta de interesse nos estudos de História, sempre minados pelo preconceito, pelo comentário ligeiro. Vi esses dias um eminente professor de jornalismo dizer na televisão que em 1930 não houve sangue. E os miolos na calçada em frente ao Quartel General em Porto Alegre no ataque feito por Flores da Cunha e Oswaldo Aranha com meia dúzia de guardas municipais? E o ataque de lança-chamas de Gois Monteiro sobre um quartel legalista naquele 3 de outubro? E as mortes relatadas por meu pai, que participou das batalhas, aos 18 anos, no front do Paraná ("falei para o soldado, te abaixa, mas ele continuou atirando, de pé, na trincheira; acabou tombando com um tiro na testa" contava ele)? Gois Monteiro narra com detalhes a estratégia e o desenvolvimento da revolução num livro pouco conhecido sobre 1930. Li no Instituto de Estudos Brasileiros da USP. O Brasil esteve sempre em guerra e as Forças Armadas desempenharam um papel fundamental nisso. Não é apenas Canudos e Contestado. É o bombardeio de São Paulo, Manaus, Salvador. Não é apenas a revolta da Chibata, é 1922, a sangüeira de 1893 a 95. Não é apenas o conflito de rua, são os milhares de mortos no campo, numa guerra sem fim. Para possuir um território desse tamanho, que equivale a uma porção gigantesca do planeta, o Brasil lutou contra espanhóis, franceses, holandeses. Os brasileiros lutaram contra tudo e todos e entre si. Continuam em guerra. O golpe de 64 é um detalhe importante porque nos atingiu diretamente. Mas essa data faz parte de um longo processo, que precisa ser estudado com o espírito da anistia e a profundadidade que merece.

LANÇAMENTO - Por que então o lançamento de cinco livros neste primeiro de abril na Fnac de Pinheiros ? Para celebrar o que a memória e a literatura estão fazendo em relação ao período inaugurado em 64. É para participar da reflexão sobre esse período que tomou conta das nossas vidas. É para expressar o que vivemos e sentimos em relação à repressão, à ditadura. E não para retaliar quem quer que seja. Pois o Brasil amadureceu e os homens de palavra continuam entre nós. Lembro as paradas militares em Uruguaiana: garbo, orgulho, firmeza. Uma nação precisa dos seus exércitos. E das pessoas vocacionadas para a luta, dentro das instituições nacionais.

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