9 de março de 2004

NOS CAMPOS DE EURICO LARA


Mais memórias, desta vez centradas no futebol. A cidade celeiro de craques não consegue chegar ao campeonato estadual. Mas o Esporte Clube Uruguaiana já está entrando em campo para disputar a segundona. Quem sabe vira campeão e entra na seleção de times para enfrentar a dupla Grenal?

O TIME - Tive também meu 16 de julho - a data fatídica do futebol brasileiro, quando perdemos a copa para o Uruguai em 50 e virou símbolo de tragédia esportiva. Tinha conseguido convencer o treinador de futebol do Colégio, Irmão Eugênio, de que eu era um goleiro eficiente. Minha fama veio do time da rua, que fundamos uma noite de verão. Estava eu, meu irmão Luís Carlos, seu amigo Getúlio, mais o Chiba (também de nome Luiz Carlos, da enorme família dos Etcheverria, que morava próxima à minha casa e tinha como patriarca um funcionário da destilaria), além do João Carlos, meu irmão de criação (hoje advogado). Formávamos um time de futebol de salão. Organizamos a bagunça, abrimos uma conta na Caixa Federal, cobramos mensalidade da gurizada da "zona" (era o nome que dávamos a bairro) e compramos uniformes - camisetas bordadas por uma faixa azul em diagonal. Fui voto vencido: queria que o time se chamasse Charrua, mas acabou sendo votado o manjado nome de Guarani.
O Irmão Arno, professor de História, hoje diretor do Colégio Santana, em seguida nos apelidou de Gelsa, uma marca de manteiga existente na época (talvez porque tínhamos topete, tínhamos força). Jogávamos contra os internos e eu, como nunca fui bom de bola, acabei me especializando no gol. Meu grande feito foi ter sido goleiro da minha aula. Num inesquecível campeonato, decidi nossa classificação para a final defendendo pênaltis. Ostentava uma camisa de goleiro - que na época era toda acolchoada - e as joelheiras, hoje instrumento erradicado do futebol. Sempre me pergunto como os goleiros podem defender as bolas - no Rio Grande do Sul, o goleiro não defendia, "atacava" a bola - sem as joelheiras, sem esfolar os joelhos no chão sem grama. “Ataca lá” me diziam, quando eu furava a terceira bola ao tentar jogar no ataque.

O VÔO DE BARBOSA - O futebol mundial entrou na minha vida na copa de 58. Tinha 10 anos e, como sempre fazia, fui ao cinema. Não sabia da decisão com a Suécia. No meio do filme, para meu desespero, interrompiam para anunciar mais um gol do Brasil. Saí do cinema e vi a praça Barão do Rio Branco toda branca de fumaça de fogos. Amigos bêbados se abraçavam aos berros. “Que aconteceu?” perguntei. “Somos campeões do mundo,” deve ter dito alguém. A partir daí, prestei mais atenção no futebol fora da cidade. Mas o quente mesmo era assistir aos grandes jogos entre meu colégio, o Santana, contra os outros - o União, protestante, o Dom Hermeto, público e os gigantes do seminário de padres, todos gringos parrudos.
O grande goleiro do colégio era apelidado de Barbosa. Quando a imprensa insiste na maldição de Barbosa, lembro que esse era o apelido de goleiro na minha época. Muito antes de Gilmar, Barbosa pontificava. Haviam outros grandes goleiros, como o Nicanor. Tinha físico de halterofilista e fechava o gol. Sua maior defesa foi, ao se adiantar demais numa jogada, atirar-se para trás, virar totalmente o corpo no ar e cair encaixado com a bola. Barbosa era diferente. "Avoava". Ou seja, gostava mesmo era de buscar a bola no ângulo. Mesmo quando a bola ia ciscando para sua meta, era defendida em grande estilo. E lembro ainda do Pato, que era mais um palhaço. Se a bola ia para a linha de fundo, ele se atirava no chão, como se estivesse "desconstruindo" o estilo charmoso dos grandes goleiros. E tinha, já entre os juvenis, o Mosquito, que defendia bola cruzada: se alguém chutasse muito forte, da extrema direita, ele se atirava e encaixava a bola no ar.
Eles eram meu modelos, mas eu tinha um defeito: fechava os olhos na hora agá. No campeonato em que brilhei, consegui defender a maioria dos pênaltis (decisão de empates), mas na final em atirei na bola de olhos fechados e fomos vice-campeões. “Eu sabia que tu não estava em forma”, dizia o chato (sempre tem um), de plantão atrás do gol.
Mas esse não foi meu 16 de julho. Aconteceu o seguinte: do outro lado do rio, na Argentina, era moda o que hoje se chama de futebol soçaite, mas que chamávamos de futebol suíço. Seis para cada lado, em campo de grama. Nada de fubebol de salão, onde a bola era pesada, murcha e que morria no nosso peito, por mais forte que fosse o chute. Esse outro futebol, suíço, tinha uma bola número três, diferente da de número cinco, que acima do Rio Grande do Sul chamavam de capotão. Nunca chamamos a bola número cinco de capotão. Era de couro e tinha uma abertura para a bexiga de borracha, interna, ser inflada. Passávamos banha de porco no couro, para torná-la lisinha, sem nenhuma aspereza.
Irmão Eugênio ficou impressionado com minha atuação no campeonato do colégio (e também com minhas defesas nos amistosos contra os internos) e me escalou como titular. Treinamos e fomos então para Paso de los Libres para um torneio. Mas eu ainda não me acostumara com a número três. Em duas bolas, o biroço bateu no meu peito e voltou (se fosse de salão, ela amorteceria). No rebote, os correntinos fizeram os gols necessários para nos tirar o título. Irmão Eugênio ficou furioso. Me arrancou do campo com um grande safanão. Fui substituído pelo irregular Orelha de Burro.

GESSY E DEGRAZIA - Muitos anos mais tarde, visitei Uruguaiana e descobri, deslumbrado, que o Guarani tinha virado time sério, grande, de futebol de campo e uma torcida organizada, a Força Índia. Virou tricolor (vermelho, preto e verde). Os guris da minha época, que faziam parte do terceiro time, eram então treinadores. O time deu certo porque organizamos uma estrutura e ela permaneceu ao longo das décadas. Hoje o Guarani tem até sede própria e já foi várias vezes campeão da cidade. Soube também que é um celeiro de craques, tendo fornecido jogadores para a dupla Grenal e até para o Santos. Não confirmei nada disso, porque virei um uruguaianense de orelhada, muito distante.
O grande craque da minha cidade foi Eurico Lara, o goleirão que defendeu o Grêmio e hoje está no hino desse time, feito pelo Lupiscínio Rodrigues (que criou para ele o verso “Lara, o craque imortal”). Fui criado a um quarteirão do Estádio Eurico Lara, do Esporte Clube Uruguaiana, que ganhou outro nome. Em torno de Lara, formaram-se todas as grandes histórias de goleiros excepcionais. Como o de quebrar um braço numa partida e continuar em campo até o final, sem tomar gols.
Nos anos cinqüenta, eu ficava no portal de casa e via o a saída do jogo. A maioria dos torcedores usava terno e chapéu. “Quanto foi o jogo?” perguntava. “Dois a zero”, diziam. Daí a pouco, repetia a pergunta. Era uma maneira de eu me enturmar numa coisa que ainda estava distante de mim. Outra grande craque foi Gessy, irmão do nosso vizinho IIldebrando, mais tarde radialista (é de Uruguaiana a grande dupla de narradores esportivos de rádio: Degrazia e João Carlos Belmonte, esse várias vezes premiado como locutor na rádio Guaíba, de Porto Alegre. Degrazia, filho de estancieiros, genial, ficou em Uruguaiana) . Gessy, que um dia participou daqueles campeonatos intermináveis entre o Uruguaiana, o Ferro Carril e o Sá Viana, foi craque do Grêmio. Todos os times continuam tendo seus próprios estádios.
Mas jogador mesmo era o Gringo, outro vizinho, que mais tarde jogou no Uruguaiana, time de grandes nomes, como Abeguar e Paré. Abeguar era da minha aula, tinha muito mais idade e driblava, nas aulas de educação física, todo o time adversário, mais o próprio time, entrava com bola e tudo e, fominha, pegava a bola para colocar de novo no centro do gramado. Paré era meio de campo. Jogava o fino. No Sá Viana, pontificava Chirunga e no Uruguaiana, o Altemir (também da minha aula, zagueiro que só tirava a bola de puxeta) e seu irmão Altair (um ponta dos velhos tempos, muito magro e "liso"). Havia também o baixinho Nick, especialista em bolas no peito do pé.
Quem pegava na veia era o Gorrinha, do time dos Andradas, time da várzea. Gorrinha era empregado do meu pai, carregava lenha, fazia todos os serviços. O chute de Gorrinha, que pegava na veia, foi batizado por ele de Chedinho.

LHAMBY - O Colégio Santana tinha dois campos, um em cima, de pedra, para os juvenis e outro gramado, em baixo, para os adultos. Luís Carlos Lhamby foi o autor da maior jogada que vi naqueles campos. A bola veio pelo alto, ele estava na ponta direita. Ele levantou a perna e gritou para o companheiro, sugerindo que iria passar a bola. Mas enganou todo mundo. Deixou a bola passar e num giro de corpo saiu na frente com a criança dominada.
Acompanhei a copa de 62 pelo rádio e a de 70, pela televisão em praça pública, em Porto Alegre. Estava já pós-graduado em futebol. Uruguaiana tinha me dado o serviço.

RETORNO - Tragédia no ar: os blogs de Helcio Toth e Marcelo Min estão fora do ar. O que aconteceu?

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