22 de março de 2004

RUMO AO RIO PINHEIROS


Cansados do sufoco no corredor do hotel da rua Aurora, saímos, o militar Argeu e eu, do centro de São Paulo a bordo de um caidíssimo Jardim Maria Luiza, que poderia nos deixar no Largo da Batata. De lá, rumaríamos para o rio Pinheiros, onde o ínclito personagem queria ver as margens daquilo que um dia foi um rio e hoje é alguma coisa perto do esgoto. Ele aproveitou a viagem para falar o que achava do “Doutor” Getúlio Vargas.

SALA E COZINHA - “O senhor sabia”, falei ao cabo Adão, que sentava ao meu lado, no fundo do despencado coletivo, sem que ninguém se desse conta da sua presença...”que pouco se sabe sobre essas guerras que ensangüentaram o país de 1893 a 1930? Por que será que acontece isso?” O brigadiano tocou a ponta do lenço branco num gesto típico e olhou para fora (o caos do barulho, calçadas pôdres, gente demolida, cansada de ter pressa).
- Lembro que eu voltava para casa e enfrentava o ponto de interrogação da família, que não entendia minha ausência por tantos meses. Precisava contar tudo em detalhes para tentar convencer mulher e filhos. Mas não adiantava. Já corria a versão de que não havia guerra, apenas escaramuças, coisas sem importância, invenção dos homens para ficar longe de casa e churrasquear de graça. Naquele tempo, a informação vinha a cavalo ou no máximo telegrama. O que pegava mesmo era o boca-a-boca. O pior é que eu vinha às vezes de uma batalha como a do Ibirapuitã, no Alegrete, em 1923, quando morreram pelo menos 200. O pasto ficou vermelho. Nem sei como escapei daquilo. A metralha do Lulu Aranha era imparcial: ceifava todo mundo. Aquilo foi a guerra. Vi atos de coragem que nunca mais se repetiram. O general Flores da Cunha dando uma carga de cavalaria em cima da ponte foi uma coisa tremenda. Se acham quie isso tudo foi um passeio, pior para os historiadores.
- Acho que estes são espécies de patrões dos fatos: só cuidam das grandes linahs e tendências, do atacado da história, da parte teórica, e deixam o varejão à mercê dos contadores de histórias das províncias. Ou se têm acesso às fontes, não lêem direito. Ao contrário dos ingleses, que cuidam de tudo. Para alguém falar de fábrica por lá, tem de sujar a mão de graxa. Aqui, não. Expulsam os fatos para a cozinha e ficam na sala falando asneira.
- O senhor tenha calma, disse o Cabo Adão. O senhor tem falado coisas sobre Getulio Vargas que nem sempre é verdade. O velho caudilho tinha seus méritos e um deles foi pacificar o Rio Grande. Juro que se não fosse ele eu tinha passado o Honório na faca.

MORTANDADE - Uma gargalhada ouviu-se lá na frente do ônibus.Lembrei meu encontro do Honório na Mooca, como está descrito no romance que lanço dia primeiro de abril. Seria ele?
- Mas o velho pagou pelos seus erros, que foram muitos. Confesso que fiquei impressionado quando ele driblou americanos, nazistas e fascistas, na época em que eles se dedicavam à mortandandade mútua. Mas ao mesmo tempo inventou um monte de novos coronéis, deu sopa para o azar. Acabou dando um tiro no coração, pois um guerreiro jamais deixa seu destino nas mãos alheias. Foi um ato de guerra o 24 de agosto de 1954. Meteu uma bala no peito para não deixar colocarem a mão nele. Homem de valor. Mas sua herança é pífia. Esse tal de Brizola é um trapalhão. Abraçou-se com tudo que é inimigo. É por isso que o teu trabalhismo é uma causa perdida.
Silenciei. Costumava ser um ouvido atento e uma língua afiada. Diante de uma fonte como aquela, nada tinha a dizer. Estava cansado demais.
- E aí, insistiu o cabo Adão (já estávamos perto do fim da linha). Do que trata a segunda parte do teu romance?
Falei a história do cara que estava aborrecido na metrópole e encontrou o fantasma de Honório. Cabo Adão não se impressionou muito. Contei mais detalhes. Ele ficou escutando. Tínhamos descido do ônibus e chegamos na ponte da Eusébio Matoso. Descemos até a beira do rio. Cabo Adão acocou-se e olhou para a água imunda.O cheiro era insuportável. De repente ameaçou levantar-se diante do ruflar de asas de uma garça. Ao mesmo tempo, seu ouvido captou, longe (vi pelo gesto brusco da cabeça) o tchibum de uma capivara.
- Tem ainda capincho e garça nesta joça, disse ele. Nem tudo está perdido.

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