6 de maio de 2004

GESTOS QUE NÃO EXISTEM

Depois de falar ao telefone, antes de colocá-lo no gancho, você olha para o aparelho interrogativamente? Você já seguiu alguém pela rua ou pediu para outras pessoas irem atrás de você fazendo gestos com a mão ou com a cabeça? Você já fechou a mão e deu um soco no ar quando acaba de perder alguma coisa? Tudo isso é lugar comum no cinema, mas jamais ocorre na vida real. Ou não existe vida real?

FEIRA DE RUA - Visito a simpática Feira de Rua do Livro de Florianópolis e constato que não existe nela, pelo menos à vista, a doença infantil do livrismo. Ao contrário, o que se destaca são as pequenas editoras catarinenses lançando coisas como Garcia Lorca em Nova York, numa edição primorosa, ou livros que reproduzem documentos antigos sobre a Ilha, análises das universidades daqui, instituições culturais a mil, como a Fundação Franklin Cascaes, nome de um erudito que já se foi e deixou vasta obra sobre esta terra. Tive a oportunidade entrevistar Cascaes nos idos dos 70 e ele me confessou que na revolução de 30 quem foi para a cadeia foram os poderosos. Na pequena feira do livro, apenas um nome ou outro mais forte entre as livrarias e editoras, como é o caso da Catarinense, uma potência local, que tem belo estande, mas pequeno, como em toda a feira. Vejo que o evento está centrado no livro e nos autores. Existe permanentemente um video reproduzindo depoimentos de vários autores, falando sobre este ofício tão cheio de grandeza e tão pouco compreendido. Uma pequena, mas significativa festa do livro na mais maravilhosa capital brasileira. Certamente neste fim de semana a feira vai lotar (hoje, com chuva e tudo, estava cheia). As editoras perdem a chance de penetrar em rede neste mercado onde sobram leitores e faltam títulos. Vi pouca coisa de importante fora da produção local, a não ser os best-sellers de sempre. É um momento raro para experimentar a aceitação de novos titulos, fazer promoções, atrair novos leitores, compor cadastros, fazer-se conhecer. Como esta feira, existem outras por todo o Brasil e também em São Paulo, já que feira de livro em Sampa não se restringe à Bienal. Só na USP existem várias feiras ótimas. E viva o Ano do Livro!

VISITA ILUSTRE - Recebo em minha casa aqui na ilha, pela primeira vez, a visita ilustre do meu irmão Luiz Carlos, que chegou vestindo magnífico chapéu branco e acompanhado da sua querida Arnalda, minha cunhada Naná. Falaram orgulhosos da suas filhas e curtiram bastante o local, de onde se avistam algumas montanhas. Luiz Carlos foi quem me atraiu para a ilha, no início dos 70, quando veio para cá fazer seu mestrado (hoje ele é PHd em engenharia de software e orienta teses na PUC do Paraná. ) Ele conta que apaixonou-se pelo lugar ao cruzar a ponte Hercilio Luz. Aqui moram também meus outros dois irmãos, Elo e José Antonio, além de cunhadas, sobrinhos e sobrinhas. Uma terra que acolhe gente de todas a partes do mundo, mas que quando resolve chover, chove de verdade. Luiz Carlos aproveitou para fazer algumas correções no meu gauchês capenga. Como costumo escrever sobre aquelas paragens, fico com fama de gaúcho, mas pouco entendo do riscado. Uma de suas correções é a previsão metereológica do pampa. Para ele o certo é : "Saracura quando canta no alto do pontão, é sinal de vento, chuva ou tempo bom." Sempre achei que fosse coruja. Ao que me replicou: "E coruja canta?" Faz sentido. O certo é que não há como errar a previsão do tempo com um ditado desses.

AO ANDAR - Neste lugar, descubro que o gesto maior do Brasil é o andar. Andando, se toma posse. Na praia, aponta-se para o horizonte, como a tomar posse de toda a paisagem. Minha geração, para entender o Brasil, precisou percorrê-lo. Meu pai, viajando pelo lado argentino, descobriu , de trem, a beleza que é Uruguaiana e toda aquela beira de rio. Anda-se para se tomar posse do país soberano. Pisar na terra sem dono, caminhar, eis o gesto definitivo do Brasil que não pode confinar-se às grandes cidades. Há um país a descobrir. Foi isso que Marcelo Min sentiu ao deixar sua marca na Bahia e no rio São Francisco. É isso que Walter Frimo vê nas suas andanças. Fotografar de verdade, só caminhando. Tomar posse aqui é sentir-se brasileiro, não se trata de amealhar latifúndios. Sentir-se livre na terra que é nossa. O MST anda pela terra de latifundios querendo pedaços de terra negada. Quero ver o filme de Walter Salles sobre as andanças de Che Guevara. El Che queria a América unida. O Brasil conseguiu do seu lado: a América Portuguesa unida. O lado espanhol tornou-se fragmentado, e até hoje sonha em unir-se. Mas como unir bolivianos e argentinos? Tarde demais. Do nosso lado, somos xipófagos: nossa genealogia é aquela do Chico Buarque em Paratodos. O Brasil é o milagre do português, e de todos os povos. Ei, e os gestos que não existem? É o seguinte: quem me chamou a atenção para eles foi Erico Verissimo, numa visita que fiz, junto com minha classe da quarta série ginasial do Colégio Santana, à sua casa. Isso foi há cem anos. E até hoje os atores olham para o telefone, mesmo no celular. E ficam fazendo gestos com a mão para serem seguidos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário