30 de maio de 2004

PALAVRA, ENCARNAÇÃO DO FATO

A indústria da informação complicou o uso da palavra. O que era complexo virou armadilha mortal. A análise que pretende libertar-se das endemias teóricas contraiu novas doenças, entre elas a desnacionalização dos articulistas. No vácuo promovido pela dispersão e a incompetência da abordagem, expressões que meses atrás nem conhecíamos viram consenso na mídia contaminada pelo espetáculo e perplexa diante da guerra. Os acontecimentos evaporam no ar, enquanto as palavras, solidamente, fecham seu cerco indevessável sobre nossas vidas.

FILA - Como fiquei alguns dias sem renovar este Diário, os assuntos atropelaram-se e já nem sei por onde começo. Talvez explicando quais expressões que tornaram-se agora consenso obsessivo no noticiário. Alguém já tinha ouvido falar em Risco Brasil até 2003? E será que existe gente hoje que aguenta mais uma repetição da indefectível "sensação térmica" ? Antes, dez graus eram dez graus. Sabíamos do que se tratava. Agora, dizem, são dez graus, mas você percebe essa temperatUra bem abaixo, porque tem o vento gelado. Não consigo entender esses dois níveis de realidade. Um, oficial, ditado pelos termômetros. E outro que é mais um feeling. Então, tá. Sei exatamente do que se trata quando falam em dois graus negativos. Já estive numa pescaria sem barraca, debaixo de grossas camadas de lona e lã, usando até gorro para não congelar (sob os cobertores, o calor é realmente sensacional). Era julho, férias, pescarias obrigatórias. Na manhã seguinte, meu pai exultava mostrando seus sapatos secos, pois tinha colocado o seu par embaixo da cama improvisada ao relento. Nós, marinheiros de primeira viagem, deixávamos as alpargatas ao lado da cama, que amanheciam encharcadas. A sensação diante do riso do meu pai não era muito térmica. E Risco Brasil? Para mim cheira a sacanagem. Eles medem o quanto o investidor especulativo estrangeiro pode lucrar com os trouxas desta nação se comprar ou não os papéis do governo, esse expediente para arranjar dólares que aplacaria, em tese, a fome extorsiva da dívida externa, que tem como retorno mais dívida.

ANEXAÇÃO - Gilberto Vasconcellos, lúcido e assustador como sempre, diz no mais recente Mais!, da Folha, que a chamada dívida externa é estratégia de anexação territorial. A boa notícia, que não refresca muita coisa, são mais duas bases da Aeronáutica na Amazônia. Estão derrubando avião brasileiro adoidado. E são os colombianos que atiram. Agora que somos colônia da China e estamos fazendo de tudo para nos atrelarmos subservientemente também à Russia, até colombiano vem tirar uma casca de nós, o país aberto a toda falta de respeito internacional. Nossa nova fase de "alinhamento" com os outros países é o de aceitar o papel de colônia em relação a colonizadores emergentes, já que diante dos países ricos nem tem graça, esses deitam e rolam há séculos. Falta-nos pagar pau para chineses, russos, e quem mais vier. Não há saída desse beco. Perdemos força, pois as palavras estão atreladas à mídia cansada de guerra. Importamos analistas estrangeiros. Agora são os americanos, franceses e ingleses (e até australianos, neozelandeses e canadenses) que analisam por nós, já que não temos voz ativa, nosso colunismo restringe-se ao humor e às superficialidades dos costumes. Os cronistas estão sempre às voltas com seus umbiguinhos e jamais ousam nada. Tanto isso é verddade que o mais contundente colunista é o José Simão, que é puro escracho. Quem está surpreendendo é o Arnaldo Jabor, com quem nuunca simpatizei, pois ficou anos puxando o saco do tucanato. Mas ele tem sido bastante contundente em suas rápidas intervenções na Globo.

FRONTEIRA - Quem tem me irritado é o Carlos Heitor Cony, com seu livro, o Beijo da Morte, que é uma fixação sobre ex-presidentes brasileiros assassinados, onde deita calúnias sobre Uruguaiana. Diz neste livro que esteve em São Borja em 2002 e que de lá não conseguiu se locomover até a cidade " mais próxima", Uruguaiana, a não ser de taxi. Cony, morador dessa clocaca que é a Lagoa Rodrigo de Freitas, escuta aqui: antes de chegar a Uruguaiana, você, se fosse um escritor de verdade, passaria pela bela cidade de Itaqui. Entre as cidades da fronteira, existem linhas de ônibus regulares desde os anos 40. É mania que ele tem, dizer que a região onde nasceu Getúlio Vargas é um ermo tomado pela barbárie. É preciso que ele more alguns meses lá para tomar um banho de civilização e deixar de ser num escriba brutalizado. Se não tens o que inventar, caia fora, que há muita gente boa na parada, pronta para divulgar palavras não tomadas pelo escândalo da mesmice e das asneiras entronizadas.

RETORNO - 1. Tony Monti mata a pau com sua nova série de entrevistas com seus amigos. O link está aqui e ao lado, já faz parte do cardápio de Outubro.Leia esse belíssimo trabalho, que, se vivêssemos num país livre e soberano, estaria na mídia impressa e não apenas na rede. Zé Medeiros, Nara e Miguel Duclós respondem às provocações de Tony e o resultado é maravilhoso. Ei, colunistas da imprensa, aprendam a trabalhar com a nova geração em vez de ficarem encastelados nas suas obsessões.
2. O poeta Rubens Montardo Junior me envia magníficas notícias de Uruguaiana. Primeiro, as comemorações da semana da cidade e dos cem anos do Colégio Santana. Nas festividades, uma homenagem ao Irmão Arno Griebler, que foi nosso professor de História e Inglês no ginásio (tínhamos ginásio naquela época!) e que hoje é diretor do colégio. O discurso, maravilhoso, ficou a cargo de Miguel Ramos, que participa atualmente de um novo filme produzido naquele pampa (faz-se cinema em Uruguaiana, Cony!)e que por enquanto é segredo. Frase lapidar do discurso do nosso grande Miguel Ramos, o maior ator do Brasil junto com Othon Bastos: "Numa época de homens sisudos, o Irmão Arno com seu espírito lúdico fez a diferença e, com sua jovialidade e amizade, conquistou uma legião de estudantes, admiradores e amigos."

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