21 de junho de 2004

ENTREVISTA COM SINISTRUS JOE


Quando todos se mandaram do sonho de viver na praia, aí pela grande crise do Plano Cruzado, ele permaneceu. Foi se afastando de todos os expedientes e hoje vive só, numa casa de pau-a-pique, ao lado de gigantesco menir arqueológico, na ponta de uma praia oculta. É direto e definitivo sobre todos os assuntos. Usa longo cabelo crespo branco revolto e vive de pequenos peixes que lhe atiram. Tem o olhar azul furibundo. De perto parece assustador. Mais de perto, sai da frente. Olha agora as pessoas que, cansadas das megalópoles, voltam a sonhar à beira do mar, e sacode a cabeça. Fui entrevistá-lo. De longe, aos berros. As respostas serviram para me deixar desconfiado: estaria ele me tirando um sarro?

P - Ei, Sinistrus, quando é que você vai voltar para a civilização?
R - Tomorrow after rain, responde, recompondo em inglês fajuto o clássico "amanhã depois da chuva".
P - Como você consegue sobreviver nesta ilha?
R - Killing dog screaming (matando cachorro a grito), continua o ermitão.
P - Você torce para qual time?
R - O da véia, sempre torço para o time da véia.
Ele estava mesmo me gozando. Mas não desisti. Subi mais alguns lances da pedra para vê-lo melhor. Usava roupa de papel crepom desbotado e segurava um cajado de osso. De baleia, possivelmente.
P - Você já viu uma baleia?
R - A toda hora. Elas engordam na civilização e chegam aqui para suar um pouco. Sempre penso que é para perder peso, mas é só para abrir o apetite.
P - Falo das baleias mesmo, as do mar.
Não me respondeu. Parece que gritava, não dava para ver. Um eco me trazia um
-...a senhora sua mãe...
mas não deu para saber se era dele mesmo.
P - Sinistrus (eu não desistia), você acha que o Brasil tem jeito?
R - Claro que tem. O Brasil sempre fica no jeito. Primeiro foram os espanhóis, depois os franceses, mais tarde os ingleses, depois os americanos, agora os chineses, os ucranianos, os trogloditas e os saramagos. O Brasil sempre dá um jeitinho de ficar no jeito. É o único país do mundo que, onde estiver, sacode as tetas.
P - Você é nacionalista, Sinistrus?
R - Nada. Sou de antes da nação. Sou do Brasil antes do Brasil. Nasci para enfiar esse cajado na costa brasileira.
E sacudiu o osso gritando para as nuvens.
Sinistrus Joe estava mesmo em forma. Quem mandou entrevistá-lo?

BACIA - Os barcos ficam lado a lado na pequena bacia. O mar deveria ser calmo aqui, mas ronca. São pequenas ondas que lambem a costa. Estariam sendo geradas por algum pesqueiro no horizonte? Não há pesqueiros hoje em toda a ilha. Estão recolhidos. Os pescadores se reúnem nos bares que só funcionam na temporada e exibem esqueletos do que foram ou serão (coisas cheias de gente bêbada). Os pescadores estão sóbrios. Parecem sérios, mas gritam quando você passa. Estão, claro, tirando uma de turistas de inverno. Um deita atirado na areia e te olha de soslaio. Massas de terra ao longe fundem-se com a maresia, que aqui possui carne grossa. Serão ilhas? Será o continente? Não sabemos. Não temos rosa dos ventos. Somos náufragos desse pedaço do planeta terra, escolhendo pequenas conchas, pequenas pedras. Todas as casas estão vazias. O sol a pino diz que é verão no corpo. Basta bater no morro aí pelas quatro da tarde, o gelo começa a descer. O sul me ensina a solidão do inverno. Debaixo de placas proibitivas, o dono solta seus três cachorrões. Eles descobrem a felicidade. Chama-se liberdade, fica na areia e na beira da água. É assim o planeta onde vivemos. Alguém deve ter puxado a descarga para que pouca gente o veja assim. Em cima de um morrete, colocaram algumas estacas e sobre elas um estrado. Alguém do povo brasileiro dorme sobre esse estrado. Viajo no tempo e aguardo. Sonho com algumas providências. O corpo pede ação. Os pulmões se recuperam. A lua nova virou mocinha. Está enfeitada, brilhante, à espera do tempo novo que chega. Lua nova não é só promessa, é feitio de oração. Desce, Mãe de Deus, teu manto sobre nossas vidas e nos proteja. Queremos aquele Brasil, o que nossos pais e avós construíram, e nos legaram. Ele continua aqui, mas precisamos saber viver nele de novo. Mutuca, Zé Gomes, toquem aquelas velhas e inéditas canções. Irei até os anéis de Saturno, para encontrar objetos perdidos...O vento é uma pedra polar...

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