22 de julho de 2004

TODAS AS LETRAS DO JOGO



Há mais sinceridade na transmissão esportiva do rádio. Todo mundo sabe que a narração sem a muleta da imagem é pura representação, uma visão unilateral do jornalista que transmite. O que não se relativiza é o resultado, o resto depende da percepção do locutor. Na TV parece que estamos vendo tudo, mas vemos apenas lances isolados de uma realidade que, em seu conjunto, fica escondida o tempo todo, pois não temos a visão que teríamos se estivéssemos no estádio. Precisamos então confiar no narrador. Quando só existe um narrador, graças ao monopólio da Globo, ficamos na mão apenas desse. E de seus colaboradores, que descrevem a estratégia, fazem a síntese do que ocorre no quadro completo da competição. Os telespectadores ficam na mão, iludidos que acompanharam tudo. Mas o que viram foi apenas riscos luminosos coloridos num espaço de linguagem cifrada, cheia de jargões e enigmas.

PARREIRA - O Brasil x Uruguai desta Copa América, decidido nos pênaltys a nosso favor, foi um conflito em treze letras, segundo avisou Zagallo no final (e por isso vencemos, porque a sorte, retrato sorridente do destino, estaria do nosso lado). Mas é sempre bom lembrar que o Uruguai nos ensina e graças ao Uruguai somos hoje pentacampeões do mundo. No fatídico 16 de julho de 1950, quando ocorreu o Maracanazo, nasceu o anjo vingador Pelé, segundo o próprio depoimento do gênio, que viu o pai chorar pela primeira vez e esse choro doeu tão profundamente que o craque menino prometeu revanche. Quando conseguiu essa revanche pela primeira vez em 1958, derramou-se. Era o choro feito de memória, uma solidariedade à geração anterior que não conseguiu ser vencedora e que dependia dos pés dos garotos para atingir a glória que escapou das mãos. O choro, em Pelé, é o resultado da opção que fez pela vitória, a mais árdua que um jogador pode conseguir, vencer uma Copa. Se Pelé não chorasse por qualquer coisa, é porque não seria esse vencedor que cumpriu sua própria profecia e que ajudou o Brasil a celebrar sua grandeza. Essa lição teve desdobramentos. Em 1970, por encararmos o jogo decisivo contra o Uruguai como uma revanche de 1950, ganhamos. E quando estávamos por um fio nas eliminatórias de 1994 e dependíamos apenas de uma vitória contra o Uruguai, veio do Exterior o baixinho Romário para anunciar nova profecia, a de que seríamos novamente campeões. Aquele último jogo contra o Uruguai antes da Copa fez Romário chamar a si a responsabilidade. O evento Romário em 1994 transformou o professor Parreira no que ele é hoje: um dos exemplares desse pequeno grupo de brasileiros dialéticos, que na representação do conflito que é o futebol aprendem com a realidade que mostra as garras (os outros são Felipe Scolari e Luxemburgo). Podemos dizer que o segundo tempo de uma decisão é sempre uma revanche para o professor Parreira. O que mais gosto nele é que nunca se abala, é um estrategista frio que enxerga as principais demandas da luta e reage criativamente em cima dela. Ele não era assim antes de 1994. Ele foi obrigado a encerrar-se num grupo fechado para ficar avesso às críticas. Mas Romário, que tinha assumido a necessidade do tetra, mostrou a Parreira que ele precisava mudar para vencer. A prudência do professor (que ensinou o Brasil a jogar sem bola) serviu para sobreviver naquela Copa. Mas foi Romário que o trouxe para o lugar onde está, quando consegue que seus craques virem o jogo na hora certa.

SEGURANÇA - Eu vejo o futebol assim talvez porque tenha sido formado no velho dois, três, cinco, quando havia mais clareza sobre defensores, meio-de-campo e atacantes. Essa rigidez formou grandes jogadores como Djalma Santos (na zaga), Didi (no meio), Pelé (no ataque, no centro) e Garrincha (no ataque, na ponta), exemplares das posições existentes. Depois da laranja mecânica holandesa em 1974, que oficializou a correria e abriu o olho dos zagueiros, que quiseram ser também goleadores, o negócio ficou mais complicado. Não entendo direito essas categorias obscuras como os volantes, por exemplo, que seriam laterais que servem tanto para defesa quanto para o ataque. Ou não? Fala-se demais em posicionamento, que significa fixidez num evento que hoje oferece um rodízio completo de posições. Quando Robinho cai provisoriamente para a defesa, minha cuca funde. O que o cara está fazendo lá? O resultado é o gol de escapada, que é como chamávamos o contra-ataque nos anos 50. Coisa de pelada: como todo mundo vai para a frente, o time adversário pega a bola e sai correndo para fazer o gol, desguarnecido da velha zaga, aquela onde dominava Ademir, meu colega de aula no Colégio Santana, que era tão seguro (porque não ia para a frente, só defendia) que só tirava bola de puxeta, para humilhar. Ademir fazia parte dessa linhagem que nos deu rochas em frente ao gol. O resultado de tanta confusão é o Roque Junior ou o Junior Baiano: como eliminou-se a cultura da zaga verdadeira, parece que improvisam gente que não é do ramo e usa a defesa para quebrar todo mundo.

MIOPIA - O que me encuca é a complexidade do jogo, que não é percebido por mim a menos que alguém o descreva. As discordâncias entre Galvão Bueno e o Arnaldo César Coelho, apesar do uso da imagem, apenas reforça que tudo não passa de percepções sobre coisas que não se revelam inteiramente. Sei apenas que o Diego põe fogo na seleção, que Adriano é uma completa surpresa, que Ricardo Oliveira não tem a mínima importância (posso estar sendo injusto), que Gustavo Nery não disse a que veio, que Julio César defendeu um pênalty, mas tomou um frango, e que Alex é um gênio. Sou um cara da arquibancada que torce sem entender. Nelson Rodrigues entendia não só porque torcia, mas porque se recusava a ver direito o jogo (usava a miopia para ver melhor, ou seja, para livrar-se dos ruídos da representação), pois ele trafegava em outra esfera, a da linguagem apenas, e não a do futebol. Essa é a lição do mestre, muito pouco aplicada hoje, quando tantos entendem tanto de futebol. Ninguém confessa que dança na análise de um jogo. Compartilha-se certezas, há concordâncias mútuas pelo menos sobre os princípios e fundamentos da crítica esportiva. Não há espaço para os incautos, os ignorantes que podem ter um lampejo. Nem mais bom humor temos mais. Foi-se o tempo em que Juarez Soares anunciava: "Está chovendo e como sempre acontece nesta região de Ribeirão Preto, a chuva pode parar". No segundo tempo realmente parava. Aí o China: "Como previ, parou de chover". Isso não acontece mais na transmissão esportiva. Tempo em que não havia tira-teima e o pobre do repórter de campo Datena tinha que medir coisas no campo porque o patrocinador era um fabricante de trenas. Por isso o chamavam de Datrena.

RETORNO - 1. Virson Holderbaum e Mario Medaglia, generosamente, acham que levo jeito para escrever sobre esporte. Mas eles sabem que eu escrevo mesmo é sobre linguagem. Sou um narrador do próprio texto. Mario Medaglia dedicou sua vida profissional ao jornalismo esportivo. Trabalhei com ele no Jornal de Santa Catarina (quando inaugurou nesta região a cobertura completa de eventos esportivos na mídia impressa) e no Estado, o primeiro de Blumenau e o segundo aqui de Floripa. Ontem ,ele me enviou um alô por e-mail e prometemos uma conversa ao vivo. Nada como reencontrar antigos companheiros. 2. Brasil x Argentina, a final da Copa América no domingo, tem 15 letras. E agora, Zagallo?

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