1 de julho de 2004

JÁ VI ISSO EM ALGUM LUGAR


A polícia baixa o sarrafo nos manifestantes que se insurgem contra o aumento das passagens dos ônibus, a decisão do campeonato descamba em violência, a imprensa amordaçada não pára de falar em democracia, o apresentador de televisão pergunta se tudo não é obra de grupos organizados, o arrocho financeiro internacional é tratado a pão-de-ló pela cara lambida dos analistas e o trabalhismo é enterrado nas revistas semanais em artigos inspirados na racionalidade superior dos eleitos da aristocracia intelectual e política. Ei, se for assim, quero meus vinte anos de volta!

GLOBO, 1968 - A caprichada produção dos primeiros capítulos de Senhora do Destino deu status de romance filmado à obra de Aguinaldo Silva. Pena que tudo voltou ao normal e temos agora os globais saracoteando suas bizarrices (ainda sou gostosa, diz a protagonista muito, muito antiga). Fatalmente voltarão as cenas em que todos mastigam à mesa enquanto conversam, servidos por empregadas uniformizadas (a maioria negras, deixaram algumas brancas para não dar tanta bandeira), que serão destratadas por madames de todas as idades e assim por diante. Além dos galãs sem nenhum talento e de olhares pseudo-profundos, que tiram as camisas para atrair o tesão das telespectadoras mal resolvidas. A única vantagem é nos livrarmos do bico feito por Marilia Gabriela, que interpretou a si mesma imaginando que estava encarnando uma personagem. É muita desfaçatez que a Globo venha nos contar como foi 1968, o ano em que apanhamos como nunca e que tínhamos a morte de plantão em nossa porta de estudantes desarmados. Nas mãos de verdugos os mais diversos, obedecíamos delegados da esquina, fardinhas escroques, coronéizinhos de paletó, chefetes de redação, professorzinhos lacerdistas, que davam aulas olhando para o infinito e com as mãos nas costas, fazendo ameaças a todos os envolvidos no movimento estudantil. Convivíamos com colegas dedo-duros, com bonequinhas que sentavam na primeira fila para fazer desenhinhos enquanto tentavam namorar os abombadinhos da engenharia e tudo o mais. Nada mais trágico do que essa juventude sem brilho, em que nos refugiamos na coragem possível e enfrentamos a polícia armados de alguns paus e palavras de ordem. Éramos o front da revolução mundial e isso ninguém nos tira. Aquele ano acabou sim, e acabou em 13 de dezembro, no AI-5. O que temos agora é um revival, pois não somos senhores do nosso destino, merecemos mesmo o deboche global na nossa cara lambida de pobres criaturas sem defesa neste ex-país.

BANANAS - Recebo lançamentos da W111 Editores e fico impressionado com a contundência de livros como Pior do que Watergate, de John Dean, E contra todos os inimigos, de Richard Clarke (esse é o roteiro de um filme de ação). Como a imprensa por lá também anda amordaçada, já que se trata da ditadura global de que nos lembram aqui no Diário, os livros são uma saída para o sufoco. Mesmo que esses livros ganhem vasto espaço na imprensa, nada se compara a ler realmente todas as páginas e entender como os bandidos fazem suas burradas. Os que citei ainda pagam muito pau ao americanismo, pois são defecções do sistema, assim como o próprio Michael Moore, mas é melhor isso do que nada. A imprensa brasileira não deslancha porque todos querem ser o que não são, costuma-se barrar a diversidade dos jornalistas e todos aqueles que se destacam como grandes repórteres investigativos acabam ou fora do país ou calados. Precisamos ter um desses exemplares em cada redação. O cara solto, sem pauta, o levantador de lebres, o louco, desarrumado, ou mesmo elegante mas eficiente na profissão. E não ex-grandes repórteres que posam de colunistas e analistas, como temos às dúzias. Gente que fez a fama e depois deitou-se no onguismo bem comportado e no aconselhamento dos eventos milionários. Precisamos de jornalistas que arrisquem a vida todos os dias e que não possa viver sem esse encargo. Para que isso aconteça, é importante que o editor-chefe convença-se que é um banana e nasceu para viver ali na cozinha, escondido do perigo. Esse é a sua função: ser exatamente nada e proporcionar o brilho alheio, pois para isso existe a grandeza de caráter e de espírito. Mas quem quer se convencer que é um banana e nasceu para admirar a coragem e o talento alheio? Precisamos de mais Samuel Wainers de todas as Ultimas Horas, mais Múcio Borges da Última Hora do Recife, mais Nestor Fedrizzi da Ultima Hora de Porto Alegre, mais Tarso de Castro do Pasquim, mais Penas Brancas, mais Hamiltons Almeidas Filhos. Precisamos de Caco Barcelos aqui (seu Rota 66 é confirmado todos os dias, recentemente uma pesquisa revelou no Rio o que Caco colocou preto no branco em São Paulo) pelo menos para encaminhar novos grandes repórteres. Queremos a manifestação livre e desimpedida, o fim da violência nos estádios (fruto da incúria administrativa e política) e democracia de verdade. Basta de ditadura.

ANIVERSÁRIO DO REAL - A televisão está eufórica fazendo materinhas sobre os dez anos do real. Vamos ver o que diz o maior repórter investigativo do mundo, o americano Greg Palast em seu clássico A melhor democracia que o dinheiro pode comprar): "Em outubro de 1998, FHC foi reeleito por um único motivo: tinha estabilizado o valor da moeda brasileira e, portanto, contido a inflação. Na verdade, não tinha. O real estava ridiculamente supervalorizado. Mas com a aproximação das eleições sua taxa de câmbio contra o dólar simplesmente desafiava a gravidade. Esse milagre levou Cardoso à linha de chegada com 54% dos votos. Mas não existem milagres. Quinze dias depois da posse de FHC, o real despencou e morreu. Sabendo muito em que a moeda seria destroçada logo depois da eleição, o Tesouro dos Estados Unidos garantiu que os bancos americanos conseguissem tirar seu dinheiro do país em condições favoráveis. Entre julho de 2002 e a posse de FHC em janeiro do ano seguinte, as reservas em dólar do Brasil caíram de 70 bilhões para 26 bilhões, um sinal de que os banqueiros pegaram seu dinheiro e fugiram. Mas a moeda permaneceu em alta antes da eleição porque os Estados Unidos deixaram clara sua intenção de substituir as reservas perdidas por um pacote de empréstimo do FMI. Um mês após a reeleição, o FMI ofereceu devidamente ao Brasil um crédito no total de 41 bilhões de dólares. O Brasil não ficou com nada disso, é claro. Qualquer parcela que tenha realmente pingado no país embarcou no primeiro avião com os investidores e especuladores que o abandonaram. Agora, os brasileiros têm de pagar a dívida." Depois riam do Brizola quando falava em perdas internacionais.

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