14 de agosto de 2004

CARTIER-BRESSON, O ILUSIONISTA

O maior fotógrafo do mundo, e de todos os tempos, Henri Cartier-Bresson, morreu deixando um pergunta no ar. Para cevá-la, ele jurou que a foto não interessava e sim aquele milionésimo do real que ele capturava no momento decisivo. Num belíssimo e importante texto sobre o tema, que li no Diário Catarinense desta sexta-feira, 13, Ricardo Chaves, um dos maiores fotógrafos do Brasil (e com quem tive o privilégio de trabalhar na IstoÉ) nota que a ausência do fotógrafo nesse momento é a marca do gênio de Bresson, que se disfarçava para não ser reconhecido, não usava sacolões como seus colegas, e pintava de preto sua Leica para não chamar a atenção. A ausência é uma nota brilhante do nosso amigo Kadão Chaves, e nos dá a pista para a magia deste ilusionista que nos revelou o real que jamais imaginaríamos, se não fosse ele e seu magnífico trabalho.

QUAL É A PERGUNTA? - A pergunta é o grande desafio. Poderíamos simplificá-la e enunciá-la com a velha questão: o que é a fotografia? Respondemos usando a orientação do mestre Walter Firmo, que diz ser a fotografia um instrumento da descolonização do olhar, o que acho uma brilhante contribuição ao pensamento sobre essa arte e que ele nos revelou numa inesquecível matéria que fiz na Senhor de Mino Carta. Hélcio Toth, que sabe como ninguém o quanto é fugaz o instante da fotografia que se eterniza e que não acredita na realidade como ela é vista (o que é um lugar comum filosófico, mas uma raridade entre os mortais); Marcelo Min, que encontra o equilíbrio estético para nos surpreender com o caos social que revela, o que é um paradoxo e ao mesmo tempo uma riqueza incomum de percepção e trabalho; e Regina Agrella, que encontra espaço onde não há (na grande cidade) e captura o detalhe em campo aberto; todos são aprendizes de feiticeiros e lidam com a pergunta de Bresson. A fotografia é um trabalho autoral, que se alimenta do real que desmorona e torna permanente o que nem tinha sido percebido. Bresson praticamente revelou o século 20 e é nesse século 20 de Bresson que eu quero morar. Quero estar na Paris libertada, quero estar junto aos grandes artistas e pensadores, quero viver na doçura dos habitantes das cidades modernas e ainda pacatas, quero brincar com aquelas crianças, quero andar naquelas bicicletas, quero participar daquele beijo. Queremos você, Bresson, queremos tua ilusão que tornou-se real porque viste o quanto ela era real (e isso ainda nos dá esperança de reencontrá-la) . Não teria coragem de viver no front de Cappa, apesar de admirar também, obviamente (é como gostar de Picasso, uma obviedade) esse trabalho de insânia e aventura. Mas teria enorme alegria em estar perto do que Bresson reinventou com sua genialidade. Quero vestir aquelas roupas, Bresson, ter aquela altura, usar aquelas boinas e nem sequer te enxergar.

QUERO SER ARTE - Ricardo Chaves reclama das câmaras digitais que batem a foto quando bem entendem, tirando o poder autoral do fotógrafo. Isso nos deixa à vontade para dizer que a fotografia digital está a meio caminho do cinema e revela o processo das criaturas em andamento, o que só se conseguia antes fazendo o clic andar em câmara lenta (quando os fantasmas do real se revelam numa sucessão de imagens). O que nos cabe, afora a pretensão de desvendar o enigma (que não temos), é descobrir do que se trata o olhar pessoal sobre o caos da realidade e como ele seleciona a imagem nítida dessa percepção. Nesta época em que até as palavras são imagens, é fundamental sabermos o que é a fotografia. Milhões de fotos estão no orkut identificando pessoas, milhões de fotos estão espalhadas por todo o mundo mostrando quem nasceu onde, milhões de fotos mostram as viagens, os partos, as mortes. Mas só poucas imagens ficam conosco para sempre. São aquelas que fazem parte do nosso sonho, da nossa carne e mostram quem realmente somos. Para uma multidão, essas imagens são as de Bresson. Se estivéssemos falando de cinema, diria que sonho ser aquele vento que sopra na cena final de Os Rastreadores (The Searchers, traduzido para Rastros de Ódio), de John Ford, quando a família vê ao longe a filha voltar para a casa sob a guarda do bruto que se civilizou. Aquele vento, que parece movimentar a cadeira de balanço, o cabelo dos homens, o rosto das mulheres. Sou aquele vento e gostaria de ser aquela luz que banha o herói que parte derrubado pela tragédia, a luz que acompanha o destino pela mão de um mestre. Gostaríamos de ser arte, por isso adotamos nossos artistas favoritos. Só os artistas sabem o quanto precisamos dessa transcendência, desse momento decisivo de eternidade, que por um milionésimo de segundo justifica toda uma vida, que parecia estar sendo jogada fora.

RETORNO - O motoqueiro grandalhão Ricardo Chaves tinha a melhor resposta para esses esculturas de Fídias que vivem notando o excesso de peso alheio. Tenho outro por dentro, dizia (frase que costumo adotar para enfrentar o mesmo problema). Foi ele quem introduziu no fotojornalismo paulista o genial Antônio Gaudério, ganhador de todos os concursos de fotografia. Os dois fazem parte do talento sem fim da fotografia nascida no Rio Grande do Sul, que tem como entidade mágica o fulminante Leonid Strelaiev, o Uda, hoje vivendo justo exílio em Garopaba.

Nenhum comentário:

Postar um comentário