18 de setembro de 2004

A LENTIDÃO EM BEN-HUR

O filme Ben-Hur, de William Wyler, ficou famoso pela corrida de bigas, mas essa seqüência memorável só pode ser entendida como o momento intensificado de uma obra lenta, densa, dramática. Há uma série de acusações a esse clássico, todas execráveis. Começa por Charlton Heston, ator magnífico que caiu em desgraça por ser confundido com canastrões e, ultimamente, por ter sido alvo da falta de respeito por parte de Michael Moore (que, mesmo movido por motivos corretos, forçou a mão ao filmar Heston na própria casa para denunciá-lo, abusando da hospitalidade e constrangendo o anfitrião ). Outra, a de que não passa de uma refilmagem, o que é um absurdo, pois a versão anterior era muda e o forte em Ben-Hur são os diálogos (vejam Gladiador para notar como refilmar pode gerar uma porcaria). E terceiro (desta vez a carga negativa vem de Gore Vidal), de que o filme não passa de uma relação homossexual entre o herói e o vilão, calúnia desmentida pelo grande final, com Ben-Hur abraçado às mulheres da sua vida: esposa, mãe e irmã.

JUDÉIA - Hoje é moda fazer filmes horrendos de glorificação do império, com bandidos fantasiados de heróis dando tiro no Oriente Médio e vilanizando os povos de lá. Em Ben-Hur é o contrário. O vilão é o império e a guerra perde a luta para a paz. Besteiras utópicas? Não, recado político a favor do entendimento numa região conflagrada. A solução seria a lucidez, o alto nível espiritual, o perdão, a emoção. O filme aborda o sofrimento humano. O bem-nascido que cai em desgraça, perde a família, mas tem sua segunda chance. Procura a vingança no front, na guerra, mas é obrigado, pelas circunstâncias e o aconselhamento, a trabalhar na representação do conflito, no estádio lotado. As seqüências anteriores à corrida são impressionantes pela força que transmitem. O árabe criador de cavalos e jogador profissional fala sobre Balthazar, um dos reis Magos da estrela de Belém que tenta trazer o herói para a solução pacífica. Balthazar é um grande homem, diz o mercador, um dia todos serão como ele. Mas antes disso vamos manter nossas espadas afiadas. Esse vai-e-vem entre a luta e a paz pontua toda a obra e carrega de emoção o reencontro de Ben-Hur com a vida que tinha perdido. Você se transformou em Messala, diz a noiva para o herói, que cai em si diante da revelação, de que o ódio o estava levando para o que mais odiava. Esse tipo de filme seria, segundo análise tradicional, apenas propaganda dos judeus que dominavam a indústria cinematográfica da época. Mesmo que fosse, é um tipo de filme que não se faz mais. Hoje, temos a barbárie dominando tudo. Não há, para começar, lentidão no andamento, densidade no timing, nada. O que há são explosões e sangue e crueldade. Filmes fora do circuito também apelam para a violência. Vejam essa coisa megalômana chamada Tarantino, que chegou a dizer que a violência existe para ele filmá-la. Ben-Hur foi um mega-sucesso. Provocava emoção e reflexão. Quem nos dera, hoje.

RUSSIA - Grandes filmes costumam ser excluídos, colocados como perda de tempo. Vejam o caso de Dr. Jivago, o espetacular filme de David Lean. Tratado como uma obra água-com-açúcar, foi também acusado de não estar à altura do livro que o originou, de Boris Pasternak. Só a seqüência do reencontro de Jivago com Lara no interior do grande país, ou a cena em que ele a perde para seu arqui-inimigo, com seu amor sumindo no meio da neve no horizonte, ou mesmo toda a viagem de trem, que tem pelo meio a passagem de Strelnikov (Tom Courtenay lembrando Trotsky) bastam para dizer que este é um filme clássico, magnífico, inesquecível. Sem falar no personagem interpretado por Alec Guiness, que procura a filha do irmão desaparecido e a encontra tocadora, como o pai, de balalaika. É um dom, diz ele no final para a moça que some no meio da população de Moscou. Lembro de outro grande filme, esse de Vittorio de Sica, Os Girassóis da Rússia, com Sophia Loren e Marcelo Mastroianni. Filme sobre a perda, filme em que o cenário é a representação da majestade dos sentimentos. Tudo isso levou a arte cinematográfica ao esplendor. Mas achavam uma porcaria. Queriam a crueza, a violência pura e simples, o horror. Agora tem isso de sobra. Bom proveito. Eu prefiro a madrugada de insônia para rever o que me apertou contra a poltrona no cinema, naquela solidão do pampa, em que tínhamos acesso à cultura universal de grande presença estética, esse cinema que corria o mundo com sua grandeza jamais igualada.

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