28 de outubro de 2004

ECLIPSE NA GRANDE ÁREA



A bola branca rolava por trás dos morros quando voltei ontem para casa. Era uma dama que se olhava no espelho pálido do entardecer. Depois, tornou-se um balão de gás subindo na noite limpa. O evento começaria aí pela hora do jogo. Sempre espero que a sombra comece a desenhar as imagens dos jornais e revistas, a lógica padrão da terra projetada que vai engolindo elegantemente a luz da lua cheia. Mas o que eu vi foi um borrão de sangue. Bem no zênite, o sol das 22 horas maquiava-se de marrom e ocre para a visita da Ceifeira. A luz do estádio nem toca a túnica da Visitadora. Ela olha para o céu, e espera que o Destino dê o alarme apagando o jorro iluminado que vem de cima. Então, um minuto depois, vibra a Foice e colhe o zagueiro na grande área. Ele se debruça sobre os joelhos e cai. O futebol despenca, ferido de morte.

RODADA - Como um saco de pedras que se descostura, como a estrela que cai em si para formar um buraco negro, como cascata de um rio de chuva ácida, o jogo perde a força da sua representação. Deixa de ser um acordo de ferimentos leves e entusiasmos descartáveis. Foge do corpo dos jogadores que então se vêem a sós, vestidos de sua própria humanidade, que tinha ficado no vestiário para que o espetáculo como rotina se confirmasse mais uma vez. Eles cercam o fruto tombado. Os anjos da medicina descem a rua da fatalidade com suas respirações boca a boca, suas massagens, num lance extremo de remediar o que tinha sido esgarçado para sempre. Ninguém mais joga a armação das mentiras em volta da lua branca que deveria ir para as redes. Não há mais bola, foi esquecida. Na beira do estádio desce o som inaudível do eclipse mortal. Paulo Sérgio de Oliveira Silva, o Serginho do São Caetano, aos 30 anos é carregado para seu último quarto de hora.

Ainda havia esperança, uma ambulância fechada, um aparelho desligado, um socorro supremo, um esforço de driblar aquela que não treina e quando joga, é definitiva. Quem estava diante da televisão viu que a rodada tinha se transformado numa fogueira de horror. Mas se aquele jogo terminou, os outros continuaram. Vi como o amigo que chorava demais com a camisa do Corinthians fez um gesto de que iria continuar. Mas os pés tinham vestido chumbo. Não houve mais gols. A lua sumia no céu impassível, para retornar mais tarde, na madrugada, quando se retirou para trás dos morros novamente.

PÂNICO - Amanheço com o vermelhão do dia anunciado. Antes que seus dardos finquem a parede da casa, um jato começa a cruzar em diagonal o céu sem nenhuma nuvem, neste final de outubro que enfim pára de ventar. A dupla fumaça que sai das turbinas vem lentamente riscando a minha atenção. Vejo essa manifestação desde tempos sem memória, naquele lugar perdido de onde um dia saí. Esses aviões vão para Montevidéu, me diziam. Eles saem de São Paulo e em poucas horas estão já no Prata. Hoje parece o mesmo tipo de jato, como se o tempo estivesse passando por um daqueles nós da espiral do tempo, em que tudo se repete.

Lembro Serginho, o que foi ferido de morte, jogador que eu desconhecia, eventual telespectador de futebol que sou. O zagueiro tinha levantado um braço pedindo tiro de meta, gesto típico de quem defende o gol, seu patrimônio. Depois deu alguns passos. O adversário ainda tropeça nele e arruma a meia que saiu do lugar com a queda do outro que começa a embarcar para a travessia. Andando de costas, atrás de Serginho, o árbitro se interpunha numa briga de pernas entre dois adversários. De repente, tudo muda. As pessoas assumem seu verdadeiro pânico, o de estar vivo sem poder representar nada a não ser o próprio desespero.

VIAGEM - O céu está intocável e o jato avança até aquele ponto onde a lua estava ontem. Não se vê nenhum rastro do eclipse. Serginho olha pela janela e talvez pense que está participando de mais uma etapa no exercício do seu ofício. Mas é sua derradeira viagem. Seu braço tinha se erguido pela última vez. A terra atravessou o umbral e tenta pousar a inútil sombra em algum campo perdido do cosmo. A lua cheia escondeu-se. Com que cara voltará hoje, quando novamente a noite cair sobre nossas vidas? Colocaremos os braços na cintura e olharemos firmes para ela.

Lua que fica atrás do espelho, qual o teu mistério? Talvez fique imóvel penteando seus invisíveis cabelos. Afasta de nós esse presságio e traga de volta o verão, que tarda. Mergulhe pelo menos uma vez no mar gelado da nossa presença, para que possamos abraçar o calor que nos conforta, a solidariedade que some. Precisamos nos despedir dessa dor que está na área e ninguém vê, a não ser que um zagueiro anuncie a tragédia, ao tombar na grama indiferente, como um anjo tomba. Ele se foi, sob o fardo da inocência e de um coração que se recusa a repetir o jogo marcado de uma civilização sem rosto.


RETORNO - Imagem desta edição: tirei daqui.

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