27 de outubro de 2004

NINGUÉM FAZ FALTA


Vidas descartáveis não se empilham apenas nos acidentes do trânsito ou nas estatísticas da violência, ou mesmo na gigantesca exclusão do desemprego. Elas existem por todo o lugar, já que ninguém mais é necessário, todos são auto-suficientes em tudo e o monólogo é a ferramenta básica de uma pseudo-civilização que sabe tudo, desde criancinha. O fato é que todos estão sendo manipulados, desde criancinha, exatamente para terem a ilusão de que tudo sabem e que portanto já nascem consultores da humanidade. O dedinho levantado, os jargões de advertência, o rosto empinado, a voz estridente e às vezes fanha, fazem de nossas comunidades um amontoado de egos insuperáveis. Isso, claro, cria um tremendo vácuo que é preenchido pelos espertalhões de sempre. Os escritores de auto-ajuda, os literatos sem nacionalidade, os poetas sem sentido, os donos do poder. A crítica verdadeira foi erradicada e não há paciência para a convivência, a não ser que ela leve ao lucro. Isso nem mais é capitalismo, é pré-estréia de alguma hecatombe.

PALCO - Como todos nascem para o estrelato, o que vemos são manifestações arteiras, performances, teatro amador perigosíssimo, já que os papéis estão todos demarcados e você, que não faz parte do show, está sob suspeita. É a época dos mal entendidos. O humor foi totalmente erradicado e se refugiou nas tiras do Laerte e Angeli, que nem mais são humoristas, são editorialistas, a última resistência do iluminismo corrompido pela desesperança. Angeli quer sumir do planeta e Laerte cria a genuflexão nos bancos, uma série maravilhosa sobre a situação de uma sociedade sem fundos, em que ninguém tem fundo. Essa sacada foi-me repassada há décadas por Virson Holderbaum, jornalista e memorialista, um observador permanente da precariedade humana e um cético que jamais perdeu a sua magnífica non chalance. Poucas criaturas te escutam e há um cerco inominável de ruídos, que impedem a produção de pensamento. Nesta sociedade fajuta, tudo já foi feito e a novidade é apenas a repetição da novidade de ontem. Jamais diga que deixou de ser novidade, todos se ofenderão. Pessoas se abraçam às próprias piadas, às mesmas dúvidas, às mesmas certezas. Há uma avalanche de dèja vu e por isso estamos abertos ao ataque estrangeiro dos pseudo-pensadores como Jacques Rancière (o paga-pau de FHC) ou Martin Amis, dos repórteres milionários que defecam sobre nosso país, dessa tempestade de merda que é o rap e que faz o Serginho Groisman se sacudir todo, como se estivesse in, por dentro da cultura up-to-date.

RADICALIDADE - No Casseta e Planeta, esse deboche ao povo brasileiro que é o Seu Creysson (o analfabeto que se arvora a ter acesso ao poder) deita e rola na Bienal de São Paulo, reproduzindo os mesmos preconceitos contra a arte que eu via estampados nas revistas do Pato Donald nos anos 50. Seu Creysson é uma repetição da Margarida, namorada do pato, que usava chapéu de frutas para dizer que era arte, e assim desmoralizar a revolução comandada por Picasso no século 20. O ator que interpreta Seu Creysson coloca duas mulheres peladas lutando sobre tintas em cima de uma tela no chão e grita que aquilo sim é arte, para aplauso da platéia ao redor. Como desconfio que tudo aquilo foi permitido e incentivado pela direção da Bienal, vejo que depois de destruírem o vanguardismo artístico com tudo que é tipo de lixo, os donos desse mercado jogam pá de cal em cima daquilo que um dia deslumbrou o mundo pela criatividade, pela radicalidade das propostas. A arte foi punida por ter tocado no principal: a percepção humana, fonte permanente de ilusão que serve aos poderosos. Desconstruir as ilusões que cercam uma obra de arte ( e portanto o mundo em que vivemos, já que arte é sempre representação) tornou-se o próprio avesso: consolidou a má vontade em relação aos artistas e deu oportunidade aos medíocres, que viram na revolução a chance de ganhar muito sem fazer coisa nenhuma. A crítica mais contundente é de autoria da faxineira de uma galeria londrina, que colocou uma obra no lixo, achando que aquele era o seu lugar. Essa é uma verdadeira intervenção popular, e não a contrafação do Seu Creysson, que consolida a porcaria para que tudo continue como está. Casseta e Planeata está no lado oposto a Laerte e Angeli. Estes dois são a verdadeira vanguarda da arte hoje. Que estejam confinados em jornais diz mais sobre nossa indigência mental do que qualquer outra coisa.

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