7 de novembro de 2004

PAZ NO DESTERRO


O artigo mensal que publico no caderno Donna, no Diário Catarinense, desta vez aborda o cruzamento de conflitos e esperanças na capital catarinense, visto aqui como a representação de um momento importante da vida nacional, quando o Brasil soberano busca saídas para viver em paz nas diferenças. Sábado, a entrevista que dei durante a Bienal do Livro em São Paulo foi ao ar na TV Senado e domingo foi repetida às 20h30 (oito e meia da noite). No pé da edição de hoje, seis vezes a mídia impressa de domingo.

Nei Duclós

Desterrados em sua própria terra (na expressão de Sergio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil), os brasileiros procuram se refugiar num sonho feliz de cidade (o achado poético de Caetano Veloso na música Sampa). Entre o historiador e o poeta, a paz que não chega é substituída pelo pesadelo, enquanto a hostilidade sobra das estatísticas e vira lugar comum. Há várias categorias de violência, como a doméstica, a do trânsito, a da corrupção, a dos assaltos. Mas no fundo é uma só, que nasce no coração seco da cidadania em pânico. Intensifica-se a impaciência diante dos desmandos, que se multiplicam nos detalhes. Como os fóruns disponíveis não suportam a carga de insatisfação, o que vemos é a negociação diária de todos os conflitos, fonte do stress que contamina todo o tecido social. Quem tem razão costuma perdê-la quando aplica no Outro a injustiça que diz sofrer. Quem não tem, conhece os jargões da correção ética e política e usa o discurso a seu favor. O resultado são os dentes cerrados, agravados pelo desemprego, a falta de perspectivas e a ascensão lotérica, panacéia inútil para todos os confrontos.

Florianópolis torna-se o ponto nodal desse cruzamento entre o imaginário que busca a paz na desigualdade, e a realidade que pressiona para arrombar as comportas. A complexidade da situação é representada pela multiplicidade geográfica. Existe aqui ilha e continente, centro e subúrbios, litoral e interior, migração e nativismo, fases cíclicas de prosperidade e estabilização de situações de crise. A paisagem, aliada ao sonho de felicidade, é cercada pela vontade política de preservação e as necessidades de expansão, algumas legítimas, outras não. Quem vem de fora, quer embarcar na qualidade anunciada e exposta no equilíbrio visível de uma urbanização amigável. Como o adventício pouco sabe das verdades fundas que atravessam os moradores como certezas avassaladoras, sente o embate da sua percepção precária diante do pensamento local, que se sente seguro por ter se destacado entre tantas experiências, a maioria mal sucedidas, de capitais que perderam o rumo ao sofrerem os processos inevitáveis de mudanças.

O perigo maior é a auto-suficiência nos dois lados. O migrante traz seus orgulhos interiores e procura aqui o melhor que traz na bagagem. O morador está firme em sua posição de alvo da admiração alheia. Relativizar os dois perfis é uma obra de engenharia social que Florianópolis engendra, nesta fase de decisões fundamentais que envolve toda a população, obrigada a viver na terra que foi fundada na exclusão e que tornou-se uma nação não só pela ação do tempo, mas pelas lideranças que souberem enxergar as oportunidades e conseguiram criar opções para uma vida dentro de fronteiras estáveis. Esta capital é um destaque desse processo e uma vitória aqui fatalmente vai funcionar como um catalizador importante para o que poderá acontecer em outras cidades.

Equilíbrio nas diferenças, fim de toda e qualquer hostilidade, paciência, amor ao próximo fazem parte da mais importante missão que qualquer cidade brasileira deverá assumir: a de acabar com as suspeitas em relação aos outros. Trazer para o cotidiano o benefício da dúvida produtiva, a que gera soluções, e sensibilizar os governantes para a importância da paz social que os instrumentos públicos e a concórdia poderão trazer, é o que todos os habitantes esperam. Acabar com a sensação de estar deslocado no país escolhido para viver (por nascimento ou opção) é algo que ainda está por ser construído. Aferrar-se a situações tradicionais que sofrem mutação radical, ou tentar impor de fora o que só pode gerar mais conflito, são equívocos que jamais poderão medrar entre nós.

Hoje, pela terceira vez morando em Florianópolis, vislumbro as paisagens que embalaram meus sonhos. Viajo pela ilha confortado pela paz que procuro encontrar depois de longo tempo confinado em espaços urbanos conflagrados. A violência nos expulsa de todos os lugares e esta capital rema contra a corrente ao propor, naturalmente, algo precioso demais para ser desperdiçado. Apurar os ouvidos, entender os hábitos, colocar-se com transparência, apaziguar os ânimos exaltados por tantos cruzamentos de conflitos, compartilhar o bem comum do Brasil soberano, eis as tarefas a que nos dedicamos com alegria, nesta quadra da vida nacional que precisa vibrar no rumo certo: o da paz como único consenso, alimentada pelas diferenças e a gigantesca complexidade que nos aguarda, cada vez que colocamos o pé na rua, ou mesmo dentro das nossas casas. Que o nosso refúgio não sejam as paredes altas, mas a confiança nos outros. E que a nossa grandeza se manifeste, neste trabalho direcionado para a implantação do equilíbrio, remédio contra o caos que poderá nos ameaçar.

MÍDIA - 1.Não foi o povo que elegeu Fernando Collor, nem o movimento dos caras pintadas que o tirou do poder. Foi o Roberto Marinho que fez as duas coisas, segundo sua viúva, em declaração para a sempre reveladora Mônica Bergamo, na sua coluna na Folha.

2. José Maria Wisnik, uma das figuras carimbadas da dita vanguarda cultural paulista, comenta que os primeiros poemas de João Cabral de Melo Netto eram uterinos. Com perdão da palavra, Cabral uterino é um bom cacete. Outra bomba da matéria sobre ele, no Mais! deste domingo, é o impacto que teria sofrido em Buenos Aires, ao conviver com uma população letrada. O Brasil não é iletrado. No Brasil, os letrados são excluídos. E são excluídos para que pontifiquem os darlings da cultura oficial, que ao descolarem-se da nacionalidade (a que interessa, a do Brasil soberano) prestam tributo à entrega total do país. Para Wisnick e outros eleitos, aceitar o fato de um Brasil letrado é perder o lugar no trono que ocupam com tanta pompa.

3. Slavoj Zizek, também no Mais! diz que a reeleição de Bush confirma que vivemos numa nova era, em que os Estados Unidos agem isoladamente para dominar o mundo. Isso é mais velho do que andar para frente. Lênin em Imperialismo, fase superior do capitalismo, analisou melhor do que ninguém esse fenômeno, fonte de tantas tragédias globais. Lênin falava das potências européias, mas sua análise cabe direitinho na América de hoje. A eleição de Bush apenas comprova que os letrados oficiais, aqueles que pontificam graças à exclusão das pessoas letradas, não servem como oposição ao império. No fundo, apenas reforçam a bandalheira e justificam a paranóia dos fundamentalistas. A solução é escancarar as portas da cultura e da mídia e acabar com a exclusão: fazer com que os letrados de todos os cantos tenham voz e a oposição não fique confinada a meia dúzia de cabeças muito bem remuneradas (exploradores da consciência internacional anti-exploração) e que continuarão vivendo disso, da briga contra Bush (que gargalha).

4. Elio Gaspari, o inventor da patuléia, fica chocado ao comentar o testemunho de um conhecido seu que viu Jair Meneghelli, atual chefão do Sesi, bochechar vinho num restaurante de Brasília. Só o Barão de Rotschild poderia se dar a esse luxo (aprovar o vinho antes de bebê-lo). O dinheiro do Barão era legítimo, claro, vinha da pirataria internacional. O de Jair é espúrio, vem da tal patuléia (origem do próprio Jair). Eu mesmo fui submetido a esse ritual de restaurante. Acho uma frescura, mas seria uma indelicadeza ao garçom recusar. O que encanta é Elio Gaspari orgulhar-se de sua posição pseudo aristocrática, uma pose que ele se atribui ao fazer parte da chamada inteligentsia (palavra em desuso). Gaspari é um exemplar da direita que se acha esclarecida. Ele e mais alguns ocupam o espaço que deveria ser da verdadeira oposição, que está excluída da mídia. A direita inventa tudo: situação e oposição, PSDB e PT.

5. Saiu do Planalto um dos mais talentosos, corajosos, gentis e brilhantes jornalistas do país. Ricardo Kotscho honra a profissão e sua presença no Planalto estava ligada à imagem que o PT vendeu, e traiu, de partido da esperança e da mudança. Sua saída foi por motivos pessoais, diz a versão oficial. Vejo de maneira diferente. Ele saiu porque sua ética não cabia mais no governo a quem serviu, governo que caiu na vala comum da nacionalidade vendida.

6. Por que o Mais!, como contraponto, não publica um artigo sobre o Brasil nessa segunda fase de Bush? Não temos articulistas preparados? Emudecemos, para que analistas estrangeiros fiquem falando só deles, como se fôssemos o lixo do mundo? Voz ao Brasil soberano. Longa vida a Ricardo Kotscho, orgulho do jornalismo pátrio.

RETORNO - Recebi o livro Poemas para ler em voz alta, de Marco Celso Viola (editora Office). Exijam seu exemplar. No próximo sábado, Celso e eu, mais Tailor Diniz, estaremos na Feira do Livro em Portinho para debater às 17h30 um pouco de literatura. Especialmente essa literatura que fica oculta e que um dia vem à tona, porque vertente de montanha jamais trai sua vocação de rio, e nenhum rio que desce esquece que um dia será mar.

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