16 de novembro de 2004

UM IMPROVISO COMPETENTE

O romancista, contista, crítico literário e jornalista Tailor Diniz me envia o texto que leu para nós no sábado, dia 13, no debate sobre literatura que mantivemos na Feira do Livro de Porto Alegre. O tema é o meu romance Universo Baldio. Ele mesmo apelidou sua intervenção de improviso competente. Mas é muito mais do que isso. É um mergulho num trabalho que custou toda uma vida e que é tratado com respeito, sinceridade e talento.

UNIVERSO BALDIO, uma análise de Tailor Diniz

Em seu Universo Baldio, Nei Duclós apresenta um viés dos tempos difíceis pós-64 que nos era desconhecido, pelo menos nos seus detalhes, nos seus escaninhos. Até então, sabíamos da existência de brasileiros exilados que, perseguidos e impedidos de exercerem seus direitos aqui, foram viver fora do país. É vasta a literatura sobre essa tragédia humana, de cidadãos obrigados a deixar a pátria para preservar o direito à vida. Mas pouco se sabia, até Universo baldio, que também havia, no Brasil da repressão política, uma juventude esclarecida, conhecedora dos seus direitos e dos perigos representados pelo exercício desses direitos, para quem não havia a alternativa de transpor as fronteiras do país para fugir da violência e da repressão política. E é sobre isso, sobre esse viés até então pouco conhecido de nós, que nos fala Nei Duclós em Universo baldio: de jovens sem alternativas, financeiras especialmente, que necessitaram, como recurso de sobrevivência, se esconder em territórios excluídos dentro da própria pátria.

Para retratar esse mundo, Duclós cria seu universo. Baldio, saliente-se, daquilo que se chama hoje, no jargão das grandes empresas e da economia de mercado, de um plano de metas futuras, ou, no vocabulário da literatura de auto-ajuda, de uma lista de resoluções a serem cumpridas dentro de um certo período de tempo. O universo desenhado por Duclós em seu livro é um descampado, sim, mas dos princípios que orientam as linhas de montagem e insistem em transformar o homem em máquina. O universo de Duclós, tão bem construído, tanto na linguagem quanto na arte de descrever ambientes e emoções, não é destituído de sonhos e de esperanças. Pois sabe Duclós, como sabia Beckett, como sabem os grandes escritores de todas as gerações, que o ser humano, por mais hostil que seja o ambiente que o cerca, por mais vazia e sem sentido que seja sua existência, é um ser que espera, e se espera, é porque sonha, e se sonha, é porque tem esperanças.

É especialmente para nos dar esse recado que Duclós recria em texto a sua república de Itaguaçu, aquela que, num tempo em que a ponte Hercílio Luz era a única ligação entre o continente e a ilha de Santa Catarina, se antecipou à Jurerê Internacional e aos empresários gaúchos da construção civil que ainda não haviam cruzado o Mampituba para fincar âncoras nas bucólicas praias do norte de Florianópolis. É para nos declarar criaturas nutridas de sonhos e esperanças, num momento no qual a ordem midiática é desconstruir, que Nei reconstrói a casa-cor-de-rosa e seus habitantes - o Peneira, o apaixonado por São Paulo e batalhador de fumo; o Alípio, que recebia visitas do pai malandro de Viamão e que conseguia ser mais duro que o filho; o americano deslumbrado com o Brasil, que dizia nunca esquecer peixinhos pela perna praia de Salvador, o do Cooper, o Jacaré, o que não entendia de onde os outros tiravam tanto assunto; a Karin, para quem a prostituição não era um grilo; o Todd, aquele que gostava de viver perigosamente; o Jair, que usava boné e lia Cortazar; o irmão de Alípio, um mochileiro de cara ovalada e cabeça grande, que foi embora com o americano, que de passagem por Nova Iorque mandou três ácidos que nunca chegaram; a Irma, a que chegou de Porto Alegre para batalhar emprego, o Luís, aquele que, depois de uma prisão e um pau em frente à prefeitura de Porto Alegre, abandonara a guerra que o general Médici ganhava no resto do país; e os visitantes de ocasião, que iam filar o pouco rango da casa, quando havia, além daquelas outras criaturas que gravitavam no entorno, compondo o clima pretendido: o pessoal do teatro, do artesanato e o cara legal que tinha um conjunto e ensaiava nos fundos da casa.

Apesar do clima de aparente desesperança e despreocupação com o dia seguinte, nota-se no fundo de cada personagem uma latente esperança, de sonhos insistindo em não morrer. Mesmo quando os sonhos parecem totalmente desfeitos, quando a desolação, representada magistralmente pelo autor pela metáfora do mar, quando Alípio se questiona por que se sentir infeliz num horizonte daqueles, onde o mar, tantas vezes sonhado, vem a representar a face cruel de um destino do qual ele esperava livrar-se para sempre; ou quando Luís vem a Porto Alegre e procura um amigo, na faculdade de filosofia, para tentar lhe vender um guarda-roupa e descolar uma grana, enquanto o tal amigo só queria falar sobre Lênin; mesmo assim, por entre as frestas que se abrem entre idas e vindas dos personagens, entre uma mendicância e outra por um prato de comida no restaurante Love Story, deixam-se denunciar os sonhos de cada um, aqueles sonhos premonitórios de que, apesar de tudo, como diz Ferreira Gullar em seu Dentro da Noite Veloz, em algum lugar, a vida bate. "Alípio sonhava com milhões. Luís queria ser Caetano Veloso. Peneira queria levar todo mundo para São Paulo." Tudo isso, acrescente-se, com uma visão bem-humorada e referências a ícones da época, como Hendrix, Cotázar, Goddard, Pasolini, Janis Joplin e Glauber.

Na segunda parte, Duclós excursiona por um universo mais intimista, mas não desprovido de bom-humor e autocrítica, no qual, numa espécie de autobiografia que se disfarça na pele do personagem Luís, dialoga consigo mesmo a procura de nortes e perspectivas que lhe abram caminhos para a salvação. Cercado de metáforas, especialmente dos fantasmas que vivem dentro de si e se materializam quando o metrô que o conduz sai de baixo da terra; num ambiente composto por estações de trens, de ônibus, pela agitação das ruas de uma grande cidade, habitat dos sem-salvação, dos sem-teto, dos sem-identidade, dos sem-carteira de trabalho, Luís debate-se em busca da primeira palavra e da salvação. Seus fantasmas o levam ao pampa, a antítese, ou o avesso, do universo anterior, mas tão desolado quanto, pois, a despeito de ter nascido ali, era um ambiente que Luís "não conhecia e no pouco que conhecia costumava-se perder." Este segundo espaço geográfico, no entanto, e a reconstrução do passado que ele enseja, servem de elo para um futuro até então nebuloso e escorregadio, cheio de incertezas, de lutas vãs e de tragédias políticas. Reencontrada a identidade, o futuro agora podendo ser vislumbrado sem a garoa e o gás carbônico das grandes metrópoles, Luís volta à praia onde se iniciara o primeiro tempo do jogo. Revigorado, acende o fogo da churrasqueira da sua nova casa e fica aguardando as visitas. Pois os amigos dos dias difíceis, aqueles que sumiam "como um sinal do que ainda estava por acontecer", esses amigos ainda haveriam de passar por ali, "perguntando seu nome e refazendo a teia que um dia os uniu."

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