21 de janeiro de 2005

GODARD, QUANDO O CINEMA PERDE A FORMA




Nei Duclós

Godard é quando a crítica cinematográfica, transformada pelas ciências da linguagem, vira cinema. Seu instrumento mais importante e fecundo é a técnica de distanciamento, inventada por Bertold Brecht para desalienar os espectadores de teatro e denunciar as ilusões da dramaturgia. O marxismo brechtiano que desaguou nessa desdramatização fez com que os protagonistas, dentro e fora de cena, catequizassem o público sobre as armadilhas a que estavam condenados pela fábrica de ilusões de massa, engendrada pela indústria do espetáculo. Desde sua estréia, em Acossado (crônica policial que denuncia a narrativa como criminosa) até a brilhante e genial Histoires du Cinema, longo ensaio sobre os cem anos da invenção dos irmãos Lumière, Godard mudou o cinema para sempre e levou-o ao patamar da radicalização revolucionária, fonte de um futuro cultural que ainda está no berço.

AVALANCHE - Lembro Gilbert Gick, o mais brilhante e debochado espécime da minha geração, saindo dos filmes de Godard, aos quais eu o levava meio contra a sua vontade, puxando elegantemente o casaco com as duas mãos, olhando para todos os lados e murmurando alto: hãgh (ou hum, hum, sim, sim), entendi tudo. Nada tínhamos entendido porque o cinema tinha perdido a forma. Não que virasse uma coisa deformada, mas era a prova de que num filme pode caber muito mais do que o corte, o close, o desfecho, o gesto. Godard incluiu na tela todos os elementos possíveis, a começar pela avalanche de citações tiradas de todos os livros importantes, tornando cada estréia uma compacta soma pré-big-bang, que aos poucos íamos desenrolando pela memória e pela repetição das sessões. O narrador, em Godard, é uma costura interminável de tudo o que é possível pensar e criar sobre cenários, personagens, tramas. Ele confessou recentemente que sempre foi mais um produtor do que um diretor, pois armava o circo para que os atores pudessem fazer nele o que quisessem. Godard está sempre remando contra a corrente do pensamento coletivo, uma forma de demonstrar que um indivíduo é o que conta, e que sua individualidade é de um espírito livre, que serve de insumo para a liberdade interior de cada um. A secura, a extravagância, a câmara que não sai do lugar ou gira vagarosamente em 360 graus, a sinceridade, a fala direta para a platéia, tudo em Godard é a constatação de que a liberdade não tem limites e que não podemos nos entregar para o pensamento pronto, para a análise óbvia, para a conclusão apressada.

LAMA - O mundo ainda levará muito tempo para digerir o que ele produziu nestes 40 anos (e continua produzindo). O importante é que Godard emociona pela razão, raciocina pela imagem, distancia-se pela palavra, foca o imprevisto, nos surpreende, nos incomoda e nos tira do sério. Nenhum artista contemporâneo tem essa capacidade e os outros cineastas radicais, como Wim Wenders, devem a ele o que há de mais precioso: o cinema como reinvenção permanente, a necessidade de habitarmos o espírito com o que há de mais alto e profundo, a agilidade e a complexidade da mente humana e a soma de todas as culturas num só plano, como se fosse possível nos encolher até o limite para então, pela mão de Godard, podermos explodir num infinito de universos. Godard não perde tempo na sua vida terrena. Não veio a passeio e jamais concordará com qualquer palavra que tu ou eu disser. Ele é o humano na sua maior verdade: a de que não sabemos quem somos e jamais saberemos, mas enquanto isso poderemos provar o gosto das estrelas, mesmo que tenhamos apenas dois pés enterrados na lama.

IMPACIÊNCIA - Devemos a Godard a liberdade que nem sonhávamos ter. Ele nos pegou meninos, desprevenidos, cheios de fumaças na cabeça e nos empurrou para o abismo. Enquanto caíamos, ele nos fez ver o longo travelling do engarrafamento brutal em Week-end, o louco explodindo-se em dinamite em Pierrot Le Fou, a graça de Jean Seberg vendendo jornal em Acossado, a estranha e bela e doce Ana Karina em inúmeros filmes, e a monumental Histórias do cinema que nenhum Scorcese, este metido inominável, jamais poderá almejar. O cinema já tinha alcançado o esplendor no começo do século 20 com Aurora, de Murnau, o mais impressionante filme mudo de todos os tempos, inacreditável que tenha sido feito quando aquela arte ainda estava engatinhando. Já tinha passado pelos expressionistas alemães, com Fritz Lang na frente, já tinha deslumbrado o mundo com Jonh Ford, quando Godard entrou em cena com seu olhar impiedoso. Estávamos sós em nossa pretensão anti-dialética quando Godard também nos ensinou a pensar, o que nenhum escritor jamais conseguiu fazer. Ele usou até o osso a capacidade dessa invenção audiovisual e nos marginalizou com sua extrema genialidade. Por isso Godard é um impaciente, porque foi longe demais para os seus contemporâneos. Vi o pobre do Michel Piccoli tentando replicar a carga de cavalaria verbal com que Godard o premiou em Histoires du cinema. Não havia trégua naquela luta. Godard exigia que Piccoli, que estava no topo das comemorações do centenário do cinema, assumisse a radicalidade que representa a sétima arte. Mas Piccoli é um ator limitado, apesar de eficiente e boa-praça, jamais será um criador como Godard.

LUZES - Ninguém pode com Godard, o monstro que nos tirou da sessão das quatro, que inundou a sessão das oito, que destruiu todas as sessões e tirou o enquadramento do lugar, desligou as luzes que se apagavam vagarosamente para criar um ambiente de ilusões. Jamais o perdoaremos por termos perdido com ele a inocência. Tornamo-nos adultos, para desgraça dos nossos corações despedaçados. Mas era a única forma de encararmos o Tempo. Por isso temos em Godard nosso Mestre, aquele que maltrata os admiradores, aquele que acende a luz e diz: você navega num espaço desconhecido, acorde. Venha ver o universo pegando fogo. Saiba qual a chama em que te transformaste, sucumba à palavra que te espera com garras afiadas, como um tigre aparentemente manso, mas que no fundo é uma pantera encarnada no terror de estarmos presentes nesta época de ruínas, neste vendaval de sobras, neste clarão de poesia bandida, neste rasgo fundo de um vulcão que está chegando para nos desafiar. Godard, Godard, o que fizeste com as pessoas que estavam acomodadas naquele cinema? Salvaste a todos nós, Godard. Você nos salvou enquanto esperávamos o inevitável Apocalipse. Se ainda estamos vivos, é porque você permitiu.

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