16 de janeiro de 2005

OS RASTREADORES, DE JOHN FORD




Não escrevo sobre cinema, escrevo sobre o que cinema faz comigo. No centro do colar de obras-primas, alguns filmes compõem uma espécie de Capela Sistina. Os Rastreadores (The Searchers, ou Rastros de Ódio), de John Ford, é um deles. O plano mais copiado de toda a história é a de Ethan (John Wayne) saindo pelo deserto afora, trôpego, com os pés para dentro, com aquele caminhar que ele construiu, mas em ruínas, afastando-se da câmara, que o filma de costas, emoldurado por duas tarjas pretas laterais. Essa dupla escuridão funciona como guardas para a luminosidade dolorosa que se descortina ao fundo. A câmara está dentro da casa destruída. Nela, o anti-herói perdeu tudo: a família que não era dele, mas do irmão, e que servia como bálsamo para sua vida errante, parentes que foram massacrados pelo inimigo. Sua missão agora é a vingança. Precisa recuperar a sobrinha raptada. A queda e a humanização de Ethan é a saga mais impressionante dessa arte que nos colheu meninos e nos implantou a noção da brutal complexidade humana.

GUERREIROS - Vi aos 14 anos essa obra absolutamente obrigatória (não vê-la é como cometer suicídio cultural). Era, para mim, o típico filme para a sessão das quatro: um faroeste colorido com o grande ator (mais importante do que Brando, segundo Tabajara Ruas, que elenca as obras-primas das quais Wayne participou: além desta, Hatari, de Howard Hawks, No Tempo das Diligências, Rio Vermelho e The Quiet Man, também de Ford, entre outras). Mas era muito mais do que isso. Cada fotograma colou-se à minha memória por muito tempo e só mais tarde, em Porto Alegre, cidade da cultura, descobri a origem e a importância do que tinha visto. Trata-se de um anti-faroeste, pela revelação de um mocinho do mal. Ethan quer matar a sobrinha, que tinha virado índia. Essa era a sua vingança: não deixar que o inimigo lhe roubasse a alma. Não permitiria que alguém do seu sangue passasse para o outro lado. Por isso atira sem parar nos búfalos para impedir que seus algozes se alimentem, numa seqüência de sangue no meio do cenário gelado, em que seu coadjuvante, Jeffrey Hunter (nós, os garotos daquele tempo) tentava impedir o transe do homem maduro, enlouquecido de dor. Era o tipo de coisa complicada demais para quem via apenas dois lados em eterno conflito. Só depois vi a importância de Scar (Cicratiz), o chefe índio que fez o rapto. Ford coloca os índios no mesmo nível dos brancos: são guerreiros que se opõem no ódio total, numa época em que os americanos estavam ganhando a parada e empurrando os nativos para o final infeliz. Há nessa busca interminável da garota desaparecida uma saga que desafia a esperança do espectador. Queremos logo o desfecho, mas Ford não dá trégua. Quer que a gente desista, para que o anti-herói fique só. Ele então se defrontará com a solução do impasse. É quando surge, correndo, desesperada, essa atriz magnífica, ainda muito menina, que é Natalie Wood.

ÉTICA - Ethan encontra a sobrinha finalmente e vai matá-la. Mas não consegue. Essa impossibilidade inventa a fresta onde se manifesta o milagre. Ele a levanta no colo e nós a levantamos junto. Nós somos aquele movimento, nós carregamos aquele corpo assustado e subimos com a câmara que se ergue com a pincelada definitiva. Vamos para casa (let?s go home), diz Ethan, a fase mais esperada do cinema. É uma decisão pessoal do pistoleiro que foi à caça de quem queria resgatar. Não foi porque seu companheiro muito moço implorou para que não cometesse o crime. Era porque diante de um penhasco, que é a ética, o mar em fúria (a vingança) nada consegue. A onda bate, e volta. O monumento permanece. A ética é a herança maior de John Ford, não a falsa ética de hoje, do Falso Bem, do mercado dos bons sentimentos. Mas a ética sofrida, conquistada em meio à coragem de assumir totalmente o que é humano. A volta dos três para a casa, onde a sobrinha irá ficar, é puro vento e majestade. O velho mensageiro louco que descansa na cadeira de balanço, a mulher de avental que olha para o horizonte junto com o marido, a chegada densa, vagarosa, dos retirantes, o desfecho dessa obra genial (da qual comento o fim porque ela tem mais de 40 anos) que fez a nossa cabeça e nos arrebatou para a grandeza da arte que foi destruída.

GARUPA - Sim, acabaram com o cinema. Mataram de várias formas. Um delas foi a morte mal explicada de Natalie Wood. Brigou com o songa monga do marido, o ator Roberto Wagner (o queridinho do Casal 20), e, bêbada, na madrugada, saiu do barco onde o casal estava, para se afogar. Não foste atrás dela, Wagner, não a levantaste até a altura maior da nossa emoção, não a carregaste nos braços para salvá-la. Deixaste aquela jóia morrer perto de ti, que deveria resguardá-la. Aquela mulher que nos deslumbrou em Rebeldes sem causa (ou Juventude Transviada, de Nicholas Ray), e que ao pular para desencadear a corrida suicida de automóveis tornou-se o símbolo de uma época. Aquela mulher que conformou-se com a perda do amor por Warren Beatty em Splendor in the Grass, (de Elia Kazan) e que foi-se para sempre, sumindo no horizonte conformada com a vida medíocre que levaria. Aquele olhão bonito, aquele rosto de princesa, aquele sofrimento por ser tão bela e talentosa. Por isso chegou a nossa vez. Nós colhemos Natalie do chão (ela treme o corpo todo) e a suspendemos em nossos braços e dizemos para ela: vamos voltar para casa, para a morada da sétima arte, hoje assassinada, mas que de vez em quando ressuscita, quando os donos do mercado cochilam, quando permitem, sem querer, que haja acertos. Nós a colocamos na garupa e a levamos para a segurança, para o lugar onde ficará com os seus. Aprendemos isso na sessão das quatro, quando havia cinema e quando tínhamos idade suficiente para cultivar a esperança.

RETORNO - Urariano Mota me incentiva a escrever mais sobre essa arte que um dia foi a mais importante. Atendo a seu pedido. Todos esses textos serão enfeixados um dia (quando houver disposição das editoras) num volume. O título é Todo filme é sobre cinema. Nele, fatalmente haverá um texto sobre Hatari, o esplendor da estrutura narrativa.

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