30 de janeiro de 2005

QUANDO A COMÉDIA CEDE AO DRAMA



Nei Duclós

Ensaio publicado neste domingo, 30/01/2005, no caderno Donna DC, do Diário Catarinense. Duas revelações inéditas na mídia impressa: a influência de John Reed em Chaplin (tese já conhecida pelos leitores do DF, do meu site e do La Insignia) e a identificação de Buddy Love (foto acima), personagem de Jerry Lewis, com Dean Martin.

PASTELÃO - O que era para ser uma celebração, uma festa de aniversário ou casamento, vira guerra de bolos e tortas, graças à intervenção de um desastrado, de um outsiderComédia é uma situação em que o excluído tenta fazer parte dela e, como não consegue, acaba destruindo o cenário. No fundo é drama: quem está por fora sofre para ser visto como um membro do clube, mas sempre será o estranho, o freak, o bobo. É drama também porque a reação do personagem, então encarado como comediante, demole o que o exclui e com isso perde a chance de fazer parte daquilo que sonhou. O que mata as pessoas de rir é o esforço malsucedido de alguém num ambiente onde só é permitido fazer tudo de maneira correta.

O exemplo clássico é o pastelão. O que era para ser uma celebração, uma festa de aniversário ou casamento, vira guerra de bolos e tortas, graças à intervenção de um desastrado, de um outsider. É assim que o palhaço denuncia a violência que o joga no lixo, virando contra os convidados o enxovalho da própria condição. Chaplin conseguiu revelar o drama como a verdadeira face da comédia, já que atrai pelo riso a atenção que desemboca na lágrima.

Chaplin inspirou-se num conto do revolucionário escritor americano John Reed, O Capitalista, para criar seu vagabundo imortal. Reed denunciava a necessidade das aparências de um excluído, que tentava vestir-se como a elite mas que se revelava, comicamente, ao enfrentar qualquer situação de conflito. Esse achado brilhante levou Chaplin a navegar nas mesmas águas do autor de Dez Dias que Abalaram o Mundo, a grande reportagem sobre a revolução russa de 1917. A fonte da comédia era a consciência de classe, o que colocou Chaplin o tempo todo contra o conservadorismo americano, crise que o levou para o exílio na Suíça. A exclusão, em Chaplin é social, mas em Jerry Lewis, é comportamental.

PROFESSOR - Jerry Lewis seguiu um caminho mais complicado, mas conseguiu, a seu modo, desvelar a tensão que é bater ponto no relógio da graça e trabalhar na fábrica da dor. Sua obra máxima, The Nuty Professor, é o filme que desnuda suas verdadeiras intenções. É mais do que uma vingança, é a reposição de papéis fundamentais, pois ele tinha nascido para o espetáculo fazendo dupla com Dean Martin e por um bom tempo arrostou sozinho o papel desumano do perdedor num país de vitoriosos. Sua fragilidade empurrou-o para a emasculação, pois é comum vê-lo de avental tentando agradar seu companheiro ou exagerando o trejeito para deixar claro que não estava identificado com a virilidade clássica. Quando Jerry amadureceu, a ruptura com Dean precisava ser levada dos bastidores para o centro do drama. Escolheu O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, para resgatar a dupla que jamais poderia ter sido desfeita, se fossem seguidos os critérios dos resultados financeiros, já que faturavam milhões.

SEMELHANÇA - O professor sem nenhum atrativo sexual, para melhorar sua imagem com as mulheres e sair da sua miserável condição de palhaço, toma um elixir mágico e transforma-se em Buddy Love, o galã que nada mais é do que a caricatura de Dean Martin. É impressionante a semelhança entre Buddy e Dean e mais ainda o fato de ninguém ter comentado isso (assim como passou despercebida a fonte literária do vagabundo chapliniano).

Jerry resolve encarnar o misterioso conquistador para dizer o quanto é irrelevante esse tipo de personalidade, tão cara a algumas mulheres (que costumam confundir o cafajeste com o homem de verdade). Seu escracho é fazer a desconstrução de Buddy Love, que no meio de uma apresentação (tinha a voz de Dean) começa a desafinar. Incluir o professor tratado como louco no universo das pessoas que tem direito a uma vida completa é o grande feito desse filme antológico, que mudou a comédia para sempre ao revelar o drama do palhaço que vicia na gargalhada e esconde o verdadeiro rosto para não perder o público.

Jerry foi fundo e chegou também a interpretar dramas de verdade, não mais ocultos nas trapalhadas em que seu personagem se metia. Mas sua arte serviu para repor a dignidade da inocência, como prova a magistral cena de O Rei do Circo, em que, vestido de palhaço, tenta levar para o riso uma criança mergulhada na tragédia. Ele só consegue seu objetivo depois de chorar. Quando a criança (o olhar sem nenhum disfarce) vê a lágrima, rebenta no riso. Era o que ela precisava: entender que a alegria não é o oposto da dor, já que para rir não podemos abrir mão de nossa situação de criaturas datadas, mergulhadas no conflito.

AMOR - A verdade, que é o drama, precisa estar na base da comédia, para que saltemos da cadeira quando Jerry Lewis coloca todo o conteúdo de uma loja no saco de um aspirador de pó e, não contente, explode tudo na cara de uma cliente afetada e chata. A comédia é o amor ao semelhante, assim como o drama é a nossa contingência.

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