9 de abril de 2005

VIAGENS DE AMARELINHO




As linhas normais de ônibus aqui de Florianópolis oferecem uma dificuldade: é preciso baldear em terminais intermediários para se chegar ao destino. Pega-se fila mais de uma vez e paga-se uma nova passagem. A solução é utilizar outro tipo de transporte, os ônibus chamados executivos, muito pontuais, de tamanho pequeno e de cor amarelo-canário, que cobram quase o dobro para fazer a travessia da ilha (tudo sempre muito longe) sem passar pelos umbrais no meio do caminho, onde se enfrenta catracas, esperas intermináveis, sufoco. Tenho feito essa opção nos últimos meses, quando a renda permite. São 35 quilômetros de viagem. Ida e volta, por dez dias, dá 700 quilômetros, que é a distância entre Florianópolis e São Paulo. Ou seja, ando de ônibus o equivalente a duas viagens a São Paulo por mês. É por isso que nunca vou a Sampa. De ônibus, nem pensar, já viajo demais. De avião, só com mais grana. Conformado, fico olhando a paisagem repetitiva (montanhas, mar, árvores, o de sempre) e mesmo sem querer acabo descobrindo vários personagens. O consultor é um deles, a leitora do Paulo Coelho, outro.

POUCA LUZ - Pego atualmente o banco do corredor, pois o da janela é receptor de lufadas de ar condicionado, fonte de uma gripe que me derrubou em março. Por isso me movimento na hora de um passageiro passar por mim rumo à paisagem vista pelo vidro. A leitora de Paulo Coelho chegou com uma grande mala, que deixou no chão do corredor, pediu licença para passar e acomodou-se. Tirou de um vasto saco plástico, onde guardava compras, um exemplar que não soube identificar, mas pela cara deveria ser o Diário de um mago ou O alquimista. Não há luz para ler no ônibus, já que não somos um país de leituras. Existe uma televisão, claro, que nunca pega e faz mais barulho do que mostra as horrendas novelas do início da noite. A televisão fica em cima dos bancos da frente e, como estão em caixas grossas numa altura baixa, acabam vitimando, a toda hora, a cabeça de alguém. Ninguém desliga a TV apesar de só fazer ruído a maior parte do tempo. Tenho visto pessoas suando para poder ler alguma coisa, se concentrar numa apostila (muita gente estuda nessas viagens) ou num livro, como a minha companheira de banco. Não sei se por hábito ou pela dificuldade causada pela luz escassa, ela corria o dedo em cima de cada linha. Pensei o quanto Paulo Coelho leva gente aos livros, pessoas que jamais estariam com um exemplar na mão não fosse ele. Para mim, a foto da contracapa do livro entreaberto mostrava o autor com sua barbicha e rosto jovem e de cabelo branco dos anos 80 ou 90. Não era um livro recente. Era um clássico. Algo que já tentei ler, em vão. Mas Paulo Coelho não escreve para este ou aquele. Escreve para a praça cheia.

SINA - O consultor chegou apressado e confessou estar morando há seis meses aqui para montar a sucursal de importante firma de Sampa, que trabalha com lojas virtuais. Conheço a argumentação da espécie, pois desde 1982 meu jornalismo, vira e mexe, está dentro do mundo corporativo. Um tipo de sina, para onde fui empurrado depois de encher um pouco de cobrir cultura, espaço de muita vaidade e camas-de-gato. Disfarçado no jornalismo de negócios, escuto pacientemente as vantagens das consultorias, mas acho a figura simpática. Diz que tem uma filha e está com a esposa também morando em Ingleses. Me convida para ir a Curitiba, de van, junto com a elite empresarial do bairro, para uma exposição da sua firma. Declino o convite pois tenho reunião bastante produtiva este fim de semana com dois camaradas de literatura. Mas fico imaginando o que me reserva as viagens de amarelinho, em que é possível conhecer gente que acabo colecionando em crônicas esparsas.

MULTIDÃO - Depois de acompanhar a jornada de penosa leitura do mago, chego em casa para os funerais do Papa. Vejo Lula sério e me pergunto se não estou de má vontade com ele, descobrindo risada num gesto fortuito qualquer capturado pela câmara. Acompanho a multidão que se despede e me emociono. Morreu o papa que a todos abraçou e que fez de cada habitante do planeta seu companheiro de jornada. Preste atenção no seu semelhante, nos diz o Papa. Veja o que a senhora ao lado está lendo. Ouça a luta do cara que veio de São Paulo para refazer a vida aqui. Acompanhe as pessoas que pegam, como você, o amarelinho veloz pelas estradas da ilha.

SANTO - O povo grita santo subito, santo já. Canonizado pelo povo, João Paulo II assume sua grandeza de personagem eterno. Somos contemporâneos de Karol Woytila, diremos para o futuro. Ele sentou ao nosso lado na nossa viagem diária e puxou conversa. Depois, nos abençoou. Quem poderá ser maior, em tão curta vida que Deus nos reserva nesta terra?

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