15 de maio de 2005

A LITERATURA COMO REVELAÇÃO




Nei Duclós

A literatura é uma luz sobre os próprios limites. Não os limites do escritor, mas a da arte que não faz concessões, que não se dá o luxo das aparências, e é trabalhada longe do que sustenta uma criatura, os sentimentos, especialmente a piedade. É a única forma de não trair sua matéria-prima, o humano em queda, a maldição do existir que leva sempre a um único desenlace. Produzir literatura é assumir a consciência de que a humanidade, a qual se dedica, não é um jogo de armar que pode ser recomposto pela palavra. É o que nos diz Urariano Mota em Os Corações Futuristas, o mais importante livro lançado no Brasil depois de 1985, nesta época em que a ditadura instaurada em 1964, que derrotou pelas armas a oposição entre 1969 e 1973 (período a que se refere o romance) estabeleceu-se como instituição. Vivemos sob o tacão de uma representação, a democracia, que foi exigida nas ruas, mas serviu apenas de pretexto para o continuísmo. Diante de tão completa derrota, a literatura volta-se para a porta da caverna onde reside. Lá, procura vislumbrar o clarão filtrado pelo tempo, que poderá dar alguma pista sobre o que realmente acontece no Brasil agora destruído na armadilha onde foi apanhado. Estamos presos, mas algo raspa a parede da cela pelo lado de fora. Antes de nos dar esperança, esse ruído nos lembra onde estamos e nos pergunta porque continuamos confinados.

NARRADOR - Por que Os corações futuristas é o mais importante livro escrito no Brasil nos últimos vinte anos? Longe das comparações entre talentos ou protagonistas literários, Urariano Mota destaca-se pelo mergulho (por ter escolhido o mais alto penhasco de onde se atira), pelo vôo (porque instaura a morada completa, ética e filosófica, de personalidades condenadas ao esquecimento) e pelo fôlego (porque encontra o ar que nos é negado em vida). Faz isso sem jamais pagar o tributo ao anedótico, ou ao regional ou mesmo à nacionalidade (porque é de outra têmpera o fogo de que se alimenta), tentações a que os escritores brasileiros costumam deixar-se levar para romper o cerco da condenação do ofício. Urariano não deixa-se levar pela História (esse fragmento nobre da Memória), nem pelo espetáculo (as baladas do leitor em busca de enredos fáceis), nem pelo circo de vaidades (o autor sendo festejado pelo que aparenta). Ele procura outro caminho, mais árduo, ao resgatar a missão fundadora da literatura. Não é outro o motivo de se apontar o narrador do livro como o personagem mais poderoso, já que tem a exata noção de que não pode servir-se dos seres criados (Samuel, João, Carlos, Vevê) como se fossem uma pizza. Esse fundamento não se entrega à mediunidade, o deixar-se levar pelas caricaturas e pelas cenas que saltam aos olhos de um escriba quando ele se mete a estocar a bolha assassina que encerra a chave do roteiro a ser seguido. Urariano não finge que não é um criador, que está apenas contando uma história. Ele posta-se no lugar sagrado a que aspirou, o de reger (para demonstrar que não existe partitura ignóbil quando escolhemos o humano, seja ele de onde for), o de construir (porque a arquitetura não é uma força da natureza, mas uma racionalidade) e o de desvelar (com o olhar cru do gado morto que, depois de perder a carcaça, mantém-se aceso como um fogo fátuo). Ele sabia onde estava se metendo, mas não tinha outra escolha. A ética é a pior das condenações. A ela o escritor de verdade submete-se e em seus braços frios entrega a sua vida.

AÇÃO - Vamos pegar a mais doce das armadilhas da literatura, a ação. O que chamam de ação é uma fuga pela porta dos fundos (e talvez seja por isso que há sempre tiroteio nas cozinhas nos filmes descartáveis). No lugar de ação, Urariano prefere relatar a condenação. Os jovens na faixa dos vinte anos na ditadura Médici estão condenados pelo que são (pobres, mulatos, negros) vivem (desemprego, exclusão social e econômica), mas não pela sua essência. O tutano de cada personagem, entretanto, não são suas leituras ou músicas favoritas (que neste livro estão elencadas de maneira paradigmática). Mas sim a interação que fazem entre si quando se encontram. Não importa os produtos culturais que vêm à tona, todos datados, mas o que eles produzem na conversa (que roça a universalidade). Mais ainda: o que eles realmente sugerem ao narrador, que tateia o tempo todo (e que nessa pesquisa deixa um lastro luminoso para o leitor). A reflexão dos personagens em seus debates obedecem à ética do autor: são superficiais num primeiro momento, mas tornam-se instrumentos para o que vai sendo aos poucos dilacerado no decorrer do livro. Quando já não existe mais perspectiva de refresco para a roda viva onde estão todos metidos, o romance chega ao núcleo do drama. No pipocar das primeiras execuções, estampadas nos jornais, a segunda parte do livro insurge-se contra o canto de sereia da primeira parte.

ORIGEM - A execução da menina que se declarava subversiva e do garoto que fazia o v da vitória para sentinelas armados, são a pólvora por onde se incendeia a obra. Não é ação, é impacto de bala. Não existe movimento quando já houve o desfecho. Não existe fuga se você perdeu a guerra dentro do seu coração. Não há saída quando a luz da entrada da caverna é puro veneno. A ação não se impõe pelo evento, mas pela constatação. Somos então responsáveis pela morte desses meninos, nós, os que não lutamos o suficiente e que continuamos de mãos amarradas? Construíram em nome deles toda uma gigantesca mentira feita de indenizações e palavras ocas como liberdade. Não há liberdade se você foi à luta mas voltou para jantar. Nem se você foi para o exílio e foi anistiado para apertar a mão dos tiranos. Ainda pulsa a vida que poderia ter sido e ela está em nós, como um cão feroz de olho na presa. Ao escritor cabe abraçar o que foi jogado fora, recuperar pela linguagem o que os tiros aniquilaram. Urariano foi tão fundo que não por acaso reencontra o fundador da língua na sua busca. Não que preste homenagem a Camões, mas traz dele os poemas que instauram esse clima de perdição e luta diante do mesmo destino que afoga os meninos torturados e mortos. Mais uma vez, Urariano mantém no fio afiado da ética. É com essa língua herdada, que traz na origem o peso da maldição de estar vivo, que ele fala de Brasil e de Pernambuco. Mas nem por isso pode ser considerado um escritor confinado às fronteiras da nação, nem identificado de maneira ortodoxa com sua Recife, que neste romance salta aos olhos como um dragão vomitado pelas águas do rio. O escritor pertence a outro território. Nele, extrai o que nos incomoda, mas ao mesmo tempo pode nos salvar, desde que não viremos as costas para ele, nem o tratemos com o desdém dos fracos, os que não se entregam aos contemporâneos por preguiça ou vaidade. Ler Os Corações Futuristas é entender o que a literatura é capaz de fazer, neste tempo em que ela parecia perdida, como alguém muito querido que sai de nossas mãos e é levado pela correnteza.

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