25 de setembro de 2005

O NÃO-LUGAR DOS TERMINAIS




As linhas de ônibus de Florianópolis não conectam mais os destinos dos passageiros. Elas concentram e despejam a população em terminais, espaços de confluência que não pertencem à estrutura urbana tradicional. O Tican, Terminal de Canasvieiras, por exemplo, não fica em Canasvieiras nem nas comunidades vizinhas (Ingleses, Cachoeira, Ponta das Canas, Capivari, Rio Vermelho). Está situado numa espécie de limbo, num ponto de passagem que não é vila, nem bairro, nem cidade. Está isolado, cercado por alguns instrumentos , como um colégio, vendas e algumas casas. Praticamente ninguém mora ali. O Terminal do Centro situa-se no aterro, que não foi incorporado à cidade, antes é um deserto composto de um centro de convenções, dois terminais (existe ainda o Maria Rita, intermunicipal), um sacolão e um vasto estacionamento, além de acessos à ponte e às estradas internas da ilha. Os terminais, no fundo, confinam a população, num esforço de organizar as forças dispersas em trânsito, para que assumam um fluxo multiplicável de consumo e adquiram uma ordem mensurável, disposta de maneira hierárquica, idêntica a que encontramos no mundo do trabalho. É uma obra da ditadura civil, a mesma que quer desarmá-lo para sempre, prezado leitor.

MISTÉRIO - Você entra no ônibus na parada perto da sua casa e paga uma passagem. Quando desce no terminal de Canasvieiras (pode ser em Trindade, Lagoa etc.) para se dirigir ao centro, paga novamente e entra na fila. A disputa por lugares é dura, surda, potencialmente conflituosa. O povo se atropela para ganhar espaço nas linhas e terá que pagar mais uma passagem se o seu destino não for o centro (se você tiver cartão magnético, é possível agrupar mais essa viagem no preço, mas se você não for daqui e estiver a passeio, por exemplo, estará ferrado, pagará novamente). Os ônibus demoram para sair e as filas se tornam gigantescas. Seria muito mais prático pegar um ônibus direto, sem ter que passar pelo terminal. Eles existem, mas a passagem custa quase o dobro. Você é gado expropriado de recursos e acumula stress entre uma viagem e outra. Os rapazes abrem as pernas, numa tendência misteriosa, que existe em todo o país, e as moças encolhem-se ofendidas se você senta ao lado delas. Os velhos levantam para te dar lugar, assim te humilham com sua desenvoltura enxuta da melhor idade, enquanto a meninada te esmaga se você tentar passar pelo corredor apertado. Há a opção de pegar o carro, se você tiver um, mas a gasolina aqui é caríssima, há tempos estava quase a dois e cinqüenta o litro e agora foi a dois e 60. São 70 quilômetros por dia, sem falar no estacionamento. A ilha está lotada e você paga de dois a três paus a hora para estacionar.

GREVES - Mas o pior é o seguinte: os motoristas estão insatisfeitos com o salário e a toda hora param sem aviso (senão o movimento seria abortado). Tem mais: se seu ônibus bater no caminho (o que já aconteceu, pois tem gente apressada e descuidada no volante) aguarde os próximos ônibus lotados. Não tem como escapar, é tudo uma armadilha, pois você trafega em autopistas ( a Beira Mar Norte, pontilhada de edifícios que ficam abaixo do nível do mar, portanto na posição em que Nova Orleans perdeu a guerra; a rodovia SC-401, que está caindo aos pedaços e ainda exibe um sinistro posto de pedágio, por enquanto desativado, mas ameaçador, pois um dia te cobrará para ires ao trabalho). Tudo isso chama-se qualidade de vida. Em setembro, só não choveu dois dias. Se não gostar, volte para São Paulo, enfie-se no buraco de onde saiu. Existem saídas. Aposente-se, torne-se um inativo e professe sua ira justa para passageiros indiferentes (é o que fazem os velhos por todo o país). Outra saída é ficar de bermuda e chinelo em casa, pisando no barro. Você vira bicho do mato. Melhor é colocar a farda, ir para a parada e refletir sobre o que pega no mundo real. Evite ler Foucault senão você vai refletir o tempo todo sobre organizações, linguagens e não-lugares. E jamais fale essas coisas para alguém. Dirão que você é um reclamão. Melhor vestir-se da cara mais séria, olhar para o vazio e agüentar no osso. Bem melhor do que enfrentar a rua Butantã lotada e subir penosamente a Teodoro Sampaio. Daqui a pouco chega de verdade a primavera.

RETORNO - 1. A praga dos manuais de redação e estilo sofre severa dedetização de Urariano Mota no La Insignia. 2. Traduções e análises primorosas de letras e poemas antigos e modernos, resenhas sobre livros e filmes, listas de melhores e piores em áreas importantes da indústria cultural, além de contos perturbadores e crônicas hilárias, tudo isso faz do the dude's talk um dos mais sérios candidatos a melhor blog de 2005. 3. As visitas ao portal Consciência, que acaba de completar dez anos de vida, estão quase alcançando o patamar de cinco mil por dia. Muito antes da atual moda da filosofia, Miguel Duclós já colocava na rede o mais importante espaço de filosofia em língua portuguesa.

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