25 de outubro de 2005

POLANSKI, A GANGORRA DO MAL



Não há luta do Bem contra o Mal em Roman Polanski, há apenas a revelação de todas as nuances do Mal. Desde sua estréia em A Faca na Água, em que personagens prisioneiros se defrontam com a falta de solução e saídas, passando pela investigação criminosa que mostra o quanto o poder público é protagonista da tragédia da cidadania, e chegando ao desfecho da busca desesperada de Harrisson Ford por Paris, onde procura a mulher e se envolve com a dama de vermelho que o seduz e acaba sacrificada, Polanski é esse cineasta intragável que não faz concessões à ilusão do que entendemos por humano. Por ser brilhante, jamais faz do seu cinema uma instalação em preto e branco, ou um pastiche de formas que sucumbem ao que traz à tona. Com ele, o Mal sobe e desce na nossa percepção como gangorra sinistra.

MONSTRO - Somos vítimas de seus jogos mortais, pois nos seduzimos pelo thriller policial que faz Jack Nicholson entender como funciona o abastecimento de água em Los Angeles, pelas pistas deixadas pela esposa desaparecida até ser trocada num resgate à beira do Sena. Ele usa a narrativa para nos enredar na sua maldição. Não satisfeito com essa performance, ainda é capaz de nos surpreender fazendo o vilão sádico que corta o nariz do herói que procura a verdade ou ainda pior, incorporando um delegado no meio de um temporal perdido no ermo, quando faz o lento e doloroso balanço da vida do escritor que pensa ainda estar vivo. Polanski nos humilha porque coloca barreiras indevassáveis entre o espectador e o criador da obra. Nunca chegaremos aos seus redutos. Eles apenas usa o que nos ilude para decifrar o código que nos mantém vivos e bate nesse brinquedo caro com os pés. Desde o dia em que os vampiros desceram do teto para sugar sua esposa mais tarde assassinada por fanáticos, ele consegue ser o que detestamos admitir. O que guardamos como ossos de um baú sem chave ele retira com a gargalhada de uma criança precocemente amaldiçoada. Queremos distância desse baixinho, mas ele insiste, e descerra a brutalidade da História para nos fazer resvalar precipício abaixo. Quando estamos vendo um filme de Polanski, nossas convicções caem junto com o nosso corpo, e o olhar que tínhamos perde o sentido. Resta Polanski pronto para rasgar o ventre da superfície da água e retirar do fundo do rio as vísceras de um monstro que não queremos ver.

PROFECIA - Seu cinema divide o Tempo. Polanski já sabia o que nos esperava no século 21 e resolveu compartilhar suas alegorias cevadas em pesadelo para que nos preparássemos. Jamais estaremos prontos para tanta crueza. Queremos colo, sorvete, footing na praça. Mas basta caminhar um pouco pela rua vazia de um verão antigo para lembramos que foi sempre assim nos filmes que marcaram época. Aquele John Wayne irreconhecível de John Ford que quer matar a sobrinha que sobreviveu ao massacre dos índios; aquele Alan Ladd que some no horizonte ferido enquanto a criança que somos nós grita por Shane; aquele Moisés de que desce da montanha com a tábuas da lei transfigurado de pavor por ter visto Deus; aquele salto triplo de Tony Curtis quando dedica o último suspiro ao abismo, para cair no punho de um Burt Lancaster até ali perdedor; aquele violinista no telhado; aquele arco íris que não chega no caminhar sem fim rumo a Oz e à casa paterna; aquela dança de Russ Tamblin, o maior dançarino do cinema de todos os tempos, tentando fazer rir pelo exagero suicida do corpo quebrado; aquela morte de Maria/ Natalie Wood em West Side Story; aquela sombra de Dusseldorf; aquele barco de Limite e de Aurora; aquela decepção da florista que reconhece seu benfeitor; aquele pedaço de circo deixado no chão antes de Chaplin partir para a estrada sem fim; essa dor que é a sétima arte, a que nos fez maiores do que jamais seríamos, arte que partiu e às vezes volta em alguns filmes poderosos, mas que sabemos ter ido embora como as diligências perdidas no deserto, como o capitão Ahab amarrado a Moby Dick, como o Capitão Kurz mortalmente ferido pela sombra, como o Godfather sussurrando o poder para o filho.

ADEUS - Quando partirmos, os anjos nos perguntarão: o que fizeram de suas vidas? Fomos ao cinema, diremos, e Deus talvez se apiede de nossas almas pecadoras. O Mal então, sairá do caminho, pois não seremos mais humanos, e Polanski poderá estar entre nós, sem se aproximar, sem se aproximar, sem se aproximar...

RETORNO - Foto recente tirada hoje na redação da revista Empreendedor, em Florianópolis. Meio distante, um pouco sombria, mas verdadeira. Feita por Kaloka, o fotógrafo que me atura na revista e que atendeu meu pedido para atualizar a imagem de um escritor que virou jornalista, de um editor ainda no front.

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