16 de dezembro de 2005

ENTERREM A REVOLUÇÃO NA CURVA DO RIO




Linha Direta, um dos programas apelativos da Rede Globo, que costuma reportar o fato de Jordinelson ter feito picadinho de Rosicleide, é ancorado por Domingos Meirelles, apresentador que é o próprio Washington Luís no poder: pomposo e altaneiro, com uma voz de assustar as criancinhas. A identificação tem base na própria introdução do seu novo livro, "1930, os órfãos da revolução". Domingos Meirelles confessa que, em 1995, sentiu-se como Verdi depois de ter composto uma obra, aquela solidão, acrescento, dos gênios. Tinha acabado de escrever sua versão romanceada da coluna Prestes, "A noite das grandes fogueiras". Precisava continuar seu projeto. Pois Verdi, compositor favorito do presidente deposto em 1930, é quem abre o primeiro capítulo do livro. Ao longo de uma tonelada de papel, a obra é a reiteração da velha tese de que a revolução que inaugurou o Brasil Soberano foi um golpe de estado com todas as características sinistras que essa expressão exige.

HERANÇA - Por coincidência, o novo enterro do conceito de revolução para o movimento armado e popular de 1930, chega bem no momento em que Vargas começa a receber algum crédito pelo que fez ao Brasil. O fundamental é evitar que se use a moeda política Vargas e se faça bom proveito da moeda JK. Vargas, que arriscou a vida para transformar o Brasil, não pode. JK, que usou o que Vargas criou, esbagaçou a economia do país, entregando-a de mão beijada para a desestabilização e o golpe de 1964, pode (ou melhor, deve). Mas Vargas, em Meirelles, é o falso carismático. Se Vargas não tem carisma, então ninguém tem. O carisma do presidente extrapola o tempo e chega com força às portas de 2006, com um monte de gente reivindicando o seu legado. Até mesmo o catastrófico Lula. Quem sabe de Vargas é o povo. Façam um teste, perguntem a qualquer pessoa acima dos sessenta , qualquer um. Esses dias, um senhor se levantou no ônibus, quando chegamos ao terminal e encerrou a longa conversa que mantinha com seu companheiro de banco dizendo: "O que estamos precisando é de um Getúlio Vargas". Quem tem carisma, claro, é Meirelles, que toda quinta-feira aparece para explorar a miséria do Brasil destruído pela longa ditadura de 64.

INVENTÁRIO - Meirelles fez um exaustivo levantamento de todas as peripécias da revolução, gerando uma espécie de enciclopédia da ação que culminou com a vitória do movimento. Mas fazer o inventário da guerra nem sempre significa entender o processo histórico. A versão de que 1930 foi uma quartelada promovida por oligarquias insatisfeitas com o resultados das eleições é a tabula rasa de uma data que mudou o país. Como estamos em pleno processo de desconstrução do Brasil soberano, e para isso serve o braço poderoso da ditadura, a Rede Globo, esse é o momento de reforçar essa teoria tão cara aos historiadores brasileiros. Mas não basta a academia se manifestar contra 1930, é preciso que os jornalistas, investidos de historiadores, romanceiem os episódios, de olho em futuro aproveitamento dos seus textos no sistema do monopólio global.

DESTINO - A revolução de 1930 foi o desfecho de 41 anos de guerra. A República tornou-se, pelo voto de cabresto, uma ditadura anti-povo. O que houve em 1930 foi uma guerra que tirou o país do atraso agrário para transformá-lo numa nação industrial; tirou a cultura nacional das garras da colônia para que ela inventasse o próprio caminho; revelou sucessivas gerações de estadistas (basta citar Oswaldo Aranha, que foi secretário geral da ONU), escritores, sociólogos, historiadores, artistas, músicos, dramaturgos. Tudo isso foi desconstruído a partir de 1964, quando mergulhamos novamente na ditadura, já que o golpe de 64 foi o anti-1930. Considero 1930 a nossa Revolução Francesa. Mas ela nasceu junto com as versões que a negavam. É importante entender 1930 como o momento culminante da nação que lutou pelo seu destino.

RETORNO - A foto é do arquivo do CPDOC e mostra Oswaldo Aranha chegando vitorioso no Rio de Janeiro (a legenda pode ser vista colocando o cursor em cima da imagem). Num gesto de extrema coragem, ele tinha chegado antes das tropas para negociar, sozinho, o fim do regime. Ao seu lado, à direita, João de Deus Menna Barreto, de tradicional família militar, que morava num antigo casarão em frente à minha casa em Uruguaiana (hoje substituído por um edifício). O gesto do grande estadista, muito moço, saudando o povo que recebeu em delírio a revolução vitoriosa, é o símbolo desse grande evento que procuram enterrar na curva do rio. Para ler sobre a Era Vargas, nada melhor do que José Augusto Ribeiro.

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