23 de dezembro de 2005

UM CORREDOR DE BRINQUEDOS




Lembro de cenas quando ainda estava no colo, no cercadinho e no berço. Lembro de diálogos inteiros e ainda nem sabia falar. Acredito que o primeiro ano de vida tem dessas coisas: já estamos prontos, só falta o treinamento para falar e andar. Tudo o que existe e acontece não escapa ao olho clínico dos que ainda estão engatinhando. As recordações do berço são as mais mágicas. Meu irmão Luiz, Carlos, com apenas 13 meses a mais do que eu, me acordou para ver os brinquedos. Era um corredor, que ligava o quarto dos pais, onde eu dormia, e a sala. Lá estava aquele antigo pião que soltava um silvo quando rodopiava e era movido a pressão. Feito de metal, bastava socar o pino várias vezes para ele funcionar. Havia a bola de futebol, os pequenos caminhões e automóveis e mais coisas que não lembro. A criançada era imensa na minha casa, especialmente nessa época, em que os parentes vinham de Porto Alegre nos visitar e viravam nossa rotina para ar. Os quartos eram reservados para os casais que chegavam com malas e filhos, enquanto nos amontoávamos em todas as partes em colchões no chão. Toda minha infância foi assim. Mas o grande momento era a ceia na véspera de Natal, quando comíamos salada de fruta com guaraná e minha tia Sarinha tomava um pilequinho tradicional.

MANHÃ - Os brinquedos só eram distribuídos na madrugada, quando estávamos dormindo. Não havia essa facilidade de ser presenteado ainda na véspera. O importante era esperar o dia 25 que, se fosse domingo, era totalmente perfeito. Levantávamos com o coração na mão e víamos os pacotes embaixo da imensa árvore enfeitada. Entre os brinquedos inesquecíveis, um tanque de guerra movido a pilha que mostrava todas as luzes enquanto corria pelo piso de parquê, virando o canhão para os dois lados. Quando batia em algum obstáculo, voltava automaticamente. Luiz Carlos ganhou um trator, que fazia com que o motorista mexesse os braços quando havia alguma manobra.

GUERRA- Eu ainda vibrei com meu tanque por muitos anos, mas outros armamentos também me emocionaram, como arcos com flechas com borracha na ponta, que grudavam no alvo (e nas paredes, em qualquer lugar onde eu apontava). Especialmente a dupla de gigantescos revólveres que soltavam balas de plástico. Era acompanhados por portentoso cinturão, que me fazia me sentir como o próprio Roy Rogers, o mocinho de faroeste que aparecia em seu cavalo Trigger atrás de uma pedra branca exatamente no momento em que a diligência (com a mocinha dentro) era atacada pelos bandidos. Muita guerra na infância? Essa era a nossa brincadeira favorita. Nascemos perto demais da II Grande Guerra, da Guerra da Coréia, e os filmes só mostravam isso. Montávamos em cavalos imaginários e perseguíamos ladrões. Depois, quando vi High Noon, de Fred Z innemann, The searchers, de John Ford e toda a sangüinolenta obra de Sam Peckimpah, passando pelo exagero do faroeste italiano, vi que a imaginação incendiada da infância tinha se transformado em algo adulto, maior.

AVÓS - O Natal, data de felicidade e paz, era pautada pelo encontro da família dispersa por inúmeros tios, primas e sobrinhos. Não conheci meus avós, de nenhum lado da minha ascendência. Pouco se falava sobre eles. Meus pais, órfãos de pai muito cedo, encontraram, talvez, um no outro, o mesmo desamparo de uma infância complicada. Mas nos passaram um tempo de extrema alegria, com seus hábitos, seu espírito de anfitriões perfeitos, dedicados sempre à celebração nas datas importantes. O Ano Novo era uma algazarra só. Tinham, como as noites de São João, São Pedro e São Paulo, muita fogueira e buscapé e trovões de pólvora. Até hoje essas festas me fazem lembrar o que tivemos naquela época longínqua, espaço agora mítico em que vivíamos crianças num mundo dominado pelos adultos. Aos cinco anos, me contaram a verdade: Papai Noel não existia. Fiquei chocado, como todo mundo, mas me acostumei. Aguardava os presentes sabendo que eram eles, os pais, que nos presenteavam. Ficou a magia, a expectativa, a alegria na manhã maravilhosa.

MÚSICA - A memória é seletiva e devemos esquecer o que realmente nos incomodou. Especialmente as frustrações diante de presentes magros em época de penúria, brigas em noites de Natal, raras, mas existiram. O que fica são as intermináveis noites de verão na calçada, em que cada um de nós possuía a sua cadeira preguiçosa. Ficávamos vendo as estrelas, fixas ou cadentes, contando os satélites, grãos de luz que passavam céleres. O grande colégio Marista em frente estava vazio , pois os internos iam para suas casas, espalhadas por todo o Rio Grande, e os professores também escasseavam, pois a maioria era de outras cidades. Da esquina onde ficava nossa casa, víamos o entardecer, absolutamente maravilhoso e que só Anderson Petroceli hoje é capaz de não perder, com seu olho enfeitiçado. Depois, víamos a grande de lua de verão subir pela Rua Bento Martins, primeiro toda laranja, depois vestida de prata. Escutávamos música de todos os tipos. O piano popular de Liberace, que destrinchava peças clássicas; a pungência de Miguel Aceves Mejia; o baião de Luiz Gonzaga. Quando cheguei na bossa nova, já estava adulto. Já tinha me mudado para outra casa, longe dali.

PAZ - Chega de saudade, dizia a bossa nova. E lá fomos nós para o mundo, carregando a grandeza daqueles Natais que permanecem na memória como o presságio de que nesta vida é possível a felicidade, mesmo que nosso corpo não atingisse o parapeito da janela e nossos cabelos engomadinhos provocasse risos nas gurias moças. Éramos azougues, guris da fronteira, pessoas da cidade, que gostavam de cinema e automóvel e que, como eu, jamais montou em cavalo, a não ser uma vez. No fundo, ninguém sabe disso, mas eu fui Roy Rogers. Pena que jamais aprendi a cantar direito. Mas quando atiro, as balas ricocheteiam nas pedras. Entreguem os bandidos para o xerife, que a cidade precisa de paz na diferença.

RETORNO - 1. Leiam o belo conto de Alexandre Gonçalves, o colega da editora Empreendedor que revive a emoção dos Natais com seus avós. Jornalista e escritor, Alexandre representa a equipe que trabalha na editora, pessoas de muita luta, sérias e que dificilmente perdem o bom humor, mesmo quando a barra não anda lá essas coisas. O texto acima foi desencadeado pela leitura do conto de Alexandre (responsável pela valiosa informação de como publicar imagens neste blog)e é dedicado a todos que compartilham comigo a viagem do Diário da Fonte nestes anos duros, em que insistimos na esperança.

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