30 de janeiro de 2006

CINDERELA AMERICANA





Dois filmes quase idênticos, Pretty Woman e Maid in Manhattan, abordam o tema Cinderela na sociedade de classes dos Estados Unidos. As mulheres, Julia Roberts no primeiro (branca, solteira e prostituta) e Jennifer Lopez (morena, separada e camareira) no segundo, são a parte excluída da história, que agarram a única chance da vida diante de um príncipe encantado. Richard Gere, o sucateador de empresas da globalização predatória, e Ralph Finnes, o republicano honesto com um pé na insinceridade da campanha eleitoral e da relação com as mulheres, se justificam pelo dinheiro e o poder, mas são vulneráveis num ponto (exatamente onde Cinderela vai atacar): traem seus ideais, e serão redimidos pelo sentimento por mulheres excluídas. Mas esse encontro não acontecerá se as mulheres assumirem sua condição de classe. Como Cinderela, elas precisam parecer da elite e para isso só há um jeito: um banho de loja. A fada madrinha (em ambos os filmes, o camareiro-chefe) é aquela que avisa: vista-se para a ocasião, mas lembre-se que você é maldita por pertencer a outra classe social. Não abuse da sorte. Apareça e quando chegar a hora, suma. É o que acontece. Mas a segunda chance já estava plantada para o desfecho feliz.

BANDEIRA - Maid in Manhattan é um filme sobre a segunda chance...de Richard Nixon. Parece brincadeira, mas é a pura verdade. O filho da protagonista, um garoto de dez anos, está invocado com Nixon, um presidente que mentiu, mas ao mesmo tempo abriu o mundo ocidental para o Leste. Ralph Finnes é um candidato republicano a senador e tem todo o carisma de alguém confiável. A bandeira nacional, presença obrigatória em todos os filmes americanos, é uma espécie de anjo que desce sobre os cidadãos novaiorquinos. O filme é de 2002 e certamente tem algum link com as eleições, já que apresenta os republicanos como confiáveis, capazes de se envolver amorosamente com o povo desprotegido, representado por Jennifer, que vive sem marido com o filho. O candidato republicano é o marido que aparece de repente: rico, famoso, protetor e apaixonado. Apesar de o filme ser essa grande bobagem, fruto da certeza que os produtores de cinema têm que todo mundo não passa de um bando de babacas, JLopez está emocionante. Totalmente vestida, ela se expressa pelas roupas e jamais pela exposição do corpo. Já a serial smiler Roberts exibe o charme da mulher disponível, que ao se apaixonar encarna o resgate de uma conduta honesta.

DESVIO - Nos dois filmes, a exclusão social e o desvio de conduta são irmãs gêmeas. Por ser pobre, JLopez não resiste e prova o vestido da milionária, e o que é pior, não entrega que não é o que parece. Por ser puta, JRoberts vende seu charme por dinheiro. Ambas caem numa arapuca: no momento em que se apaixonam (por terem colocado a máscara da inclusão social, as roupas), cai a máscara do desvio de conduta. Ela merece uma segunda chance, diz o garoto para o candidato. O homem "de bem", republicano, dá uma colher de chá à mentirosa e casa com ela. Mas ao assumir o romance, ele faz um pacto com a credibilidade. Conto com seu voto? ele pergunta. Vamos ver, ela responde. O investidor de coração seco não consegue desvencilhar-se da mulher com a qual conviveu por mais de uma semana, paga por ele, e acaba nos braços dela, numa apoteose ridícula de braços abertos e limousine prateada. Ao reconhecer a Outra, Gere redime-se da sua condição de homem mau dos negócios. Uma coisa admirável nos americanos é a sua intensa e profissional cara de pau. Eles não têm vergonha nenhuma de mentir e apostam que enganam todo o povo o tempo todo, contrariando assim a máxima do fundador da nação, Abraham Lincoln.

CARISMA - É preciso acrescentar a releitura americana de um detalhe fundamental do mito Cinderela: o de que a protagonista é uma nobre caída, que o destino impôs uma situação de empregada doméstica, e que, com o baile, tem a chance de recuperar sua condição natural perdida. Nos Estados Unidos, onde a nobreza são os valores e princípos fundadores da nação, basta a determinação e a sorte para a excluída ascender ao paraíso da terra de oportunidades. É mais uma mentira, pois uma camareira como JLopez ou uma prostituta de rua como Julia Roberts já possuem o carisma natural e o filme apenas finge que elas são o que parecem. A nobreza está no nome das superstars. A história é apenas a água-com-açúcar para o chá amargo da brutalidade da divisão de classes no Império, coisa que se estende por todo o seu quintal.

RETORNO - O discurso de Al Gore, proncunciado no dia 16 de janeiro, traduzido na revista Cronopios, e comentado por Carlos Eduardo Magalhães, é leitura esclarecedora sobre a melhor parte da América que se insurge contra a tirania que a domina atualmente. Sobre Bush disse Al Gore: " Um executivo que arroga o poder de ignorar as diretivas legítimas do Congresso ou de atuar liberto do controle do judiciário torna-se a ameaça central que os Pais Fundadores tentavam anular na Constituição - um executivo todo-poderoso que recordava demasiado o rei de quem se haviam liberto".

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