14 de janeiro de 2006

VOCÊ ACREDITA EM DOCUMENTÁRIO?





Esses documentários sobre a natureza são subprodutos do evolucionismo midiático. Todos dizem a mesma coisa: que a natureza chama para a procriação, que os machos se exibem para namorar, que os filhotes treinam nas brincadeiras suas vidas selvagens futuras, que os bichos vivem para acasalar, que se sacaneiam uns aos outros, roubando peças para o ninho (pode ser pedra ou galho) e assim por diante. Os animais são criaturas sem vontade própria, jamais têm um momento de lazer (a não ser como sinal de preguiça ou outro tipo de sacanagem), não raciocinam e vivem ali à mercê dos cinegrafistas. Os narradores, com suas toneladas de falas científicas, nos torram a paciência mostrando sempre a mesma coisa. Não existe nada mais igual do que uma paisagem natural do planeta. O problema é que a imagem captada pela câmara não é natural, é fruto de uma percepção, humana e artificial, ou melhor, cultural (ou quase). Dizem que o Greenpeace ganhou força quando assassinou um monte de foquinhas e filmou, para escândalo geral. Dizem.

SANGUE - Dizem também os jornais que Lula decidiu manter nossos soldados no Haiti depois de ver um documentário sobre Ruanda, que mostrava o massacre da população depois que as tropas da Onu se retiraram. Lula talvez prefira que os massacres ocorram enquanto as tropas brasileiras estiverem lá. O que mais me escandaliza é ver personagens da vida pública que eu achava terem desaparecido, como é o caso de José de Alencar, ministro da Defesa e vice-presidente da República, e o assessor para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia. Eles nem querem cogitar a retirada das tropas. São, portanto, coniventes com as mortes que virão. Achei que fazia parte da literatura esses velhos que mandam a flor da juventude para a morte. Mas eles estão entre nós, com suas certezas. Com as mãos cheias de sangue, vão ter que responder à História. Ou pelo menos aos contemporâneos, quando os sacos plásticos chegarem recheados de cadáveres. Vai correr muita bala no Haiti e nós estaremos lá, a mando do Império, com o empurrão desses dois focas gigantes, que se fossem filmados nesses documentários da natureza arrancariam risos da platéia. Mas estão em cargos importantes e devemos tremer de terror diante deles.

ESCÁRNIO - O documentário descreve a paisagem para que ela seja devorada. É a representação do Império. Os americanos palmilham todo o território com seus documentários, mostrando que podem tocar em aranhas, pegar jacaré a unha, deixar que escorpiões passeiem por seus braços. É sinal de que podem tudo, colocar suas patas em todo o planeta. No rally Paris Daccar, que ontem, segundo a carinha preocupada de Sandra Anneberg, da Globo, matou uma criança pobre num acidente, o desprezo pela paisagem é o espetáculo da barbárie avançando sobre territórios pobres dominados. Os participantes quebram a bacia, as costelas, os braços, morrem, matam. E a mídia lá, louca por sangue e pela indiferença. Documentam o escárnio milionário da tecnologia usada de maneira arrogante. São os heróis de araque do nosso tempo, esses sujeitos que nada fazem a não ser figuração diante das câmaras. São leões marinhos, albatrozes, peixes-boi, a exibir seus folguedos para platéias sedentárias. Mas tudo é considerado normal. Como é o nome da menina atropleada e morta na Mauritânia, ou algo assim, ontem no rally? Quantos anos tinha, o que queria ver, ou estava apenas ali e foi colhido pelo assassino? O bestalhão luta com todas as forças para chegar em primeiro lugar. Mata se for preciso. As câmaras aceitam. E os apresentadores e doras de tv piscam os olhinhos. O gado humano está exposto em seus patéticos sonhos de enriquecimento e para isso fazem qualquer coisa, até participar do Big Brother.

RETORNO - A foto é Cachorros, de Helcio Toth, um fotógrafo de verdade.

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