10 de março de 2006

PESADELO VISTO PELO TELEFONE





A conversa estava, como sempre, a dois passos de mim, num banco de trás do ônibus. É a lei de Murphy: todos viajam quietos, menos quem está ao alcance do meu ouvido. Sempre acho que são os espíritos atormentados que querem fazer contato e usam a mediunidade proporcionada pela idiotia para me atazanar. Era uma conversa interminável ao celular. Tão infinita que a mulher, depois de falar por 40 minutos, desceu do ônibus com o aparelho grudado na orelha. Pelo vidro, vi que ainda mexia os lábios, sinal que continuava desovando suas histórias. Quando sumiu do meu campo de visão, imaginei que ela jamais largaria seu objeto de consumo e continuaria, pelo cosmo afora, falando sem parar. O telemóvel, como dizem os portugueses, trouxe a vida íntima de cada um para a Ágora, o espaço público de debate. No caso em questão, custei um pouco a me contaminar com o papo, que a uma certa altura se referia ao fato de a moça ser migrante. Viera de Porto Alegre e construíra casa na ilha.

SOTAQUE - Seu sotaque era evidente. É, como todo tom adventício, cantado, ou parece ser. Todas as frases terminam em , mas não o né japonês, mas o né magrinho, vindo dos anos 60, quando a meninada, com muita bola na cabeça, desencadeava a falar, e como era pouco escutada, insistia com o interlocutor para ver se ele estava ouvindo, nééé? Dizia a mulher: "Minha casa está pronta, só falta o acabamento, ninhé! Fulana, nunca mais foi a mesma. Ela se acha um modelo de felicidade. Cada um tem seus problemas, nééé? Nunca vi. Mas o aluguel aqui no centro é muito caro, eu estou a 150 metros da praia, no fim de semana vou ao mar. Como está Fulano? Viajou com a esposa? Coitado. Aquela louca é capaz de se separar dele e ainda levar a casa. Desejo toda a felicidade para ele. Você pode vir aqui no verão. Em agosto faz um ano, então a gente combina. Se for o caso eu passo aí um tempo contigo, néé" . Seguiam-se as despedidas. Era uma a cada dez minutos. Parecia que o pesadelo ia acabar, mas a mulher engatava uma segunda e continuava. Por que ela escolhera o ônibus para colocar a conversa em dia? Ou era um ser mutante, fruto da tecnologia irresponsável?

TEATRO - Tapei os ouvidos para não escutar mais. Já me disseram para comprar um walk-man, vir escutando Brahms pelo caminho, mas não gosto de qualquer coisa me atrapalhando, seja relógio, anel, fio, fone de ouvido, o que for. Venho de cara limpa, pronto para escutar o mundo. "Então tá, querida, liga para mim pelo menos uma vez por mês para me dar essa injeção de ânimo". Como não vi que sua vítima tenha tido qualquer chance de replicar, ou entusiasmá-la mais do que já é ao natural, estranhei esse falso diálogo, que substitui quem ouve com todas as frases possíveis. Isso se chamava solidão, mas agora é apenas doença. Imaginei que louca do celular fosse um atriz, com script decorado e não tinha ninguém no outro lado da linha. Já tive celular, custa uma fortuna cada ligação. Eu comprava 30 reais de créditos, fazia duas ligações de dois minutos, recebia um recado em trinta segundos e a operadora já estava me informando que kaput, era preciso tilintar mais. Por isso desisti. Fico admirado com a bufunfa disponível por gente que gosta de falar. Ou serão essas promoções, compre uma Gisele Bunchen, ponha Ronaldinho no bolso e vá à Copa pela Internet? Sei lá.

FIO - Sou do tempo que o telefone tinha a cara de uma máscara de comédia. Dois olhos eram a campanhia, o bocal era isso mesmo, uma boca espichada de metal amarelo brilhante e o troço que se punha no ouvido, comprido em forma de fone, ficava dependurado, quando fora de uso, e ocupava o lugar da orelha. A gente dava manivela (não estou brincado) e a telefonista atendia. Numerô? perguntava ela. Era assim mesmo, numerô. Eu entendia lorô? Aí a gente dizia: 274. A mulher então fazia a ligação. Interurbano era uma impossibilidade. Falar para outra cidade era berrar sem escutar. Para o interior do município, a mesma coisa. Por isso que existia, e existe até hoje, os avisos pelo rádio: Fulano, vem logo, tua mãe morreu. Traz o dinheiro para as velas. Meu pai um dia se esgoelava no telefone, tentando orientar parceiro de negócios que estava esperando uma mercadoria. Fica na expectativa!, dizia meu pai, pela milésima vez. Era para o cara continuar aguardando. Mas onde fica isso? perguntava, desesperado, o pobre homem. Agora sei onde fica. É onde estou agora. Na expectativa. Espero que um dia as torres de celular pifem todas ao mesmo tempo e as pessoas voltem a se encerrar para falar em telefones pretos. Tínhamos paz e não sabíamos.

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