24 de julho de 2006

GUARNIERI: A VERDADE PROFUNDA




Eva Wilma disse uma frase fundamental no enterro de Gianfrancesco Guarnieri, que se foi no sábado: "O mais importante é que ele amava o Brasil, amava o povo". Disse isso fazendo uma expressão que interpreto como exaustão de ter de lembrar algo tão óbvio, mas que se torna quase inédito (e desconfortável) na atual fase da vida nacional. Disse com uma gravidade reveladora da nossa orfandade, pois verdade tão profunda já nos escapa, nós que abrimos mão do Brasil soberano. No funeral do grande dramaturgo, coluna mestra da insurreição cultural contra o arbítrio que desceu sobre nós em 1964 e ainda não nos abandonou, Eva Wilma também nos lembra, com sua frase, o quanto as pessoas aprisionadas pelo sistema de televisão que nos oprime sabem como estamos longe de uma nação livre. Exatamente por termos virado as costas para o país que nos acolhe e abriga, o país que atualmente traz de volta seus filhos colhidos pela guerra no Líbano, filhos que vieram de uma outra nacionalidade para a qual prestam tributo no sotaque e nos costumes, mas que são brasileiros, assim como Gianfrancesco Guarnieri, trazido aos três anos da Itália e que aqui assumiu o país que defendeu até a morte.

EQUILÍBRIO - Como repórter em São Paulo, tive a oportunidade de visitá-lo um dia na sua casa no Morumbi, ampla e despojada de qualquer ostentação. Ele estava num sofá, meio confuso com minha pauta, que era um ensaio sobre o palco, invenção desse editor magnífico que é o Fernando Poyares, na época na liderança da revista Santista. Eu já tinha falado com Antunes Filho, que me recebera com generosidade, e tentara o Diogo Pacheco, que no dia da entrevista, por também não entender a pauta, me mandou embora. Com Guarnieiri aconteceu o esperado: fui recebido com gentileza e receptividade. Eu mesmo não sabia o que queria fazer com aquelas entrevistas, por isso nem tinha por onde começar. Lancei um briefing mais ou menos louco, fruto da conversa que tivera com Poyares. E Guarnieri, o cara que em 1955, com vinte anos deslumbrou a todos com sua peça Eles não usam black tie (imagem de hoje), que foi o maravilhoso roteirista dessa obra-prima de Roberto Santos que é A Hora e a vez de Augusto Matraga, falou comigo por uma hora. Viabilizou o texto que publiquei numa reportagem de capa da revista. Disse muitas coisas e sobre sua vida usou de uma imagem, que traduzo mais ou menos assim, filtrado pela memória: nós, artistas brasileiros, somos surfistas, precisamos saber nos equilibrar na onda. Explico melhor: não na onda da moda, mas na onda avassaladora que a tudo carrega.

CONTENÇÃO - Sabemos o quanto foi longa e árdua sua vida, tendo que fazer novelas sem parar, e ao mesmo tempo lutando pelo seu teatro e os filmes dos quais participou. Como ator, ensinou a todos como fazer. Fundado no exercício da autenticidade, jamais deu bola para essas besteiras com que a profissão foi cercada, como carisma ou glamour. Ele era o personagem sem abrir mão de si mesmo. Era didático sem ser piegas, moderno sem ser superficial, de vanguarda sem ser espalhafatoso. Tinha uma contenção clássica que projetava escassez humana. Sua voz parecia trêmula, desfocada, sem empostação, mas não havia presença mais marcante no palco ou na tela. Era o criador que estava ali, apascentando suas criaturas e nos mostrando o caminho das pedras para nos desvencilhar da alienação. Ele desdramatizava, como Brecht, e ao mesmo tempo encarnava a fúria diante da injustiça, a luta permanente contra o descaso. Buscava a lucidez coletiva a partir de suas luzes próprias. Convencia quando atuava, por ser um ator de primeira grandeza, um professor da dramaturgia libertária, que foi colocada na sombra pelo besteirol e outras bobagens comerciais.

COMETA - Guarnieri professava a verdade profunda; o amor ao país e ao seu povo. O povo com o qual se identificava no interminável drama da escravidão. Sonhou a liberdade na prática, no front. Equilibrou-se na maré alta da destruição do país, como a voz que veio de longe, do levante, do confronto, da época em que estava claro o que iam fazer com o Brasil. Daquele tempo, destaco ainda a cena em que Eva Wilma grita com Walmor Chagas em São Paulo S.A., de Luiz Sergio Person: Vamos acabar com esta palhaçada! Esse grito ainda vale, por mais que nos sufoquem com uma dramaturgia de araque nas produções televisivas, por mais que nos afastem de teatro, por mais que eliminem o cinema sério e desafiador. Guarnieri deixa seu recado com a própria vida, a que nos iluminou como um grande cometa, que por ser surpreendente, gigantesco e tomar conta de todo o céu, se transforma num acontecimento inesquecível. Somos cria dessa luz intensa e sabemos o quanto foi traída nos anos que se seguiram à sua luta. Mas Guarnieri, ator, dramaturgo, poeta, é a resistência que fica, ao nosso lado, como um punho cerrado.

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