2 de julho de 2006

O GOZO DOS TRAIDORES

Não bastou sermos classificados em primeiro lugar nas eliminatórias, à frente até dos argentinos, nossos arqui-rivais, e de nações emergentes do futebol, como Equador, e anos luz de forças tradicionais, como o Uruguai. Não bastou vencer todas as partidas da primeira fase da Copa, desmoralizando os prognósticos pessimistas sobre a importância dos croatas ou a animação japonesa. Também não bastou darmos duas goleadas, uma contra o Japão e outra contra Gana, que vinha com tudo, paparicada como aspirante africana a vôos mais altos. Tudo isso não significava nada. O que era preciso provar era nossa vocação de vira-latas. Era preciso dizer, como foi dito em 2002, aí vem as potências, aí é que eu quero ver. Pois em 2002 passamos o ralador sobre Inglaterra e Alemanha e desta vez caímos pelo escore mínimo de um a zero contra a França. Pois foi a conta. Os traidores, os que se locupletam com as vitórias da seleção e vivem descendo o pau nela, caíram de quatro e sairam pastando, comendo a grama onde Zidane pisou. Pedro Bial, sempre ele, chegou a dizer que as flores dos franceses eram mais perfumadas e o olhar (e apareceu o Zizão, sua paixão, na tela) mais sedutor. Isso mesmo, sedutor. Bandeira total. Gozaram de tanta emoção. Enfim foi provado: o treinador campeão do mundo Parreira não é de nada e nossos craques já eram, são só farol.

MORDOMIAS - Os traidores querem, no fundo ser europeus. Adoram as mordomias por onde andam, graças à seleção brasileira pentacampeã, achando que tudo isso é fruto do esforço deles, traidores. A seleção brasileira é obra do povo brasileiro e conquistou tudo na base do esforço, do sacrifício e das lições aprendidas. Agora ficam querendo que o Felipão nos vinge. Pois a vitória do Felipão, se houver, contra a França, será apenas dele, Felipão, e dos portugueses. É Portugal, e não o Brasil, que entrará em campo. Basta dessa síndrome de vingança. Ela nos tolhe a visão, nos enche de ressentimento e quer provar que somos superiores. Não somos, mas também não somos inferiores. Somos ainda a maior potência do futebol, mas isso não nos livra de derrotas, decepções. Deveria nos livrar da traição, desse monte de babacas seguradores de microfones, cheios de razão, tirando rapidamente o time de campo para cair em cima dos craques, que não conseguiram, numa partida, superar o adversário.

GRANA - Alguns jogadores também sofrem da mesma condição subalterna, pois ganham dinheiro com os europeus, são funcionários da grana européia. Isso pesa, sem dúvida. Não são nossos times que estão lá, não é o campeonato brasileiro que se faz representar, são o resultado da política predatória que expropria nossos recursos e exporta. É o que fizemos sempre com o ouro que um dia foi nosso. É preciso mudar essse quadro. Impedir que os recursos sejam carreados para fora de maneira escandalosa. Só pode ser exportado jogador que der pelo menos cinco anos de vida profissional ao país. E deveria ser proibido vender jogador com menos de 18 anos. É preciso intervir na cartolagem e investir na infra-estrutura esportiva. Que a profissão seja o resultado do amadorismo de massa, subsidiado, com fortes raízes nos colégios, como era antigamente. Lembro dos campeonatos que disputávamos, o da Primavera, o de comemoração ao beato Champagnat, fundador dos Maristas. Tínhamos grandes craques na sala de aula, que depois se profissionalizaram. Estudavam, viu, Cafu. Os jogadores brasileiros não são os analfabetos que deram certo no campinho da várzea. Somos um país, uma civilização. Basta de traição, basta de sentimentos subalternos. Kaká, Sócrates, Raí, todos analfabetos? Pelé, Gerson, Tostão, todos ignorantes? Pelo amor de Deus.

RECOMEÇAR - Uma das coisas mais execráveis é essa invenção pagã dos deuses dos estádios. Acho que é coisa do Armando Nogueira (aquele que disse a frase insuperável: "se não tivesse nascido gente, Pelé teria nascido bola"). Tudo é humano num estádio de futebol. "Esse vazio de estádio depois dos jogos" como disse um dia, num verso imortal, Marco Celso Viola. Sim, poeta, é como nos sentimos. Jornais velhos voando, as luzes apagadas e o frio na espinha. Ermos dos gritos da geral, eis que custamos a voltar para casa, olhando o espaço que nos pertenceu por algum tempo. Somos o Brasil soberano, a pátria exilada dentro de nós. Estamos fartos de traidores, assim como estamos fartos de patriotadas. Queremos apenas nossa porção de humanidade, com direito a um lugar digno entre as nações. Queremos voltar o que nos expropriaram. Recomeçar, recomeçar, recomeçar, como dizia o diretor Luis Sergio Person na obra-prima São Paulo S.A. É a fala final do filme, quando o protagonista, interpretado por Walmor Chagas, olha para a serra do mar, envolta em bruma, e absolutamente vazia. E chorar, sim, com a derrota, como fizeram os argentinos, depois de lutarem tanto pela classificação. E não sair abraçado ao Zizão, como fez Cicinho. Não sejamos escravos, nem tratemos os jogadores como escravos (não cumpriram sua obrigação, dizem os torcedores).

RETORNO - Entrevista com professora da USP, autora de importante livro sobre a ordem escravocrata(http://veja.abril.uol.com.br/050706/entrevista.html).

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