16 de julho de 2006

O RESGATE DOS TROPEIROS





De repente, a saga dos tropeiros é resgatada por três caminhos. Primeiro, pelo melhor programa da televisão brasileira, o Globo Rural (ah, se todos fossem iguais a você). O que encanta nas manhãs de domingo quando vemos este decano trabalho de competentes jornalistas, não é apenas o assunto e sua diversidade, mas a lição que expõe para os seus pares, que infelizmente não seguem os princípios e fundamentos ali apresentados. Não há, por exemplo, jornalismo de breque - aquelas materinhas pseudo-humanas em que o repórter tenta fazer suspense antes de terminar as frases (dá uma paradinha e olha firme como se você fosse um idiota).

Ao contrário: Globo Rural é didático sem ser piegas ou arrogante. E sem ser forçado, jamais deixa de ser simpático, ou melhor, anfitrião, à moda dos moradores do interior que te recebem com alegria. Informa sem querer montar um circo, e diverte sem se fazer de engraçadinho, como acontece com tantos noticiários. E coloca tudo o que é importante do setor sem propor sustos ou advertências. Pois bem: a série de reportagens da equipe (a primeira foi com o magnífico José Hamilton Ribeiro) pega desde as raízes da aventura dos tropeiros, na Argentina, e seguirá, com uma expedição especialmente formada, até Sorocaba.

As outras fontes do resgate estão bem explícitas em dois livros. Um deles foi lançado dia 13 em Curitiba. Trata-se Aventura no Caminho dos Tropeiros - narrativa de cavalgadas realizadas no antigo Caminho do Viamão, rota utilizada pelos tropeiros para levar mulas e gado do Rio Grande do Sul até Sorocaba-SP, desde 1733 até 1900. O livro, apresentado pelo romancista e jornalista Eliziário Goulart Rocha (meu companheiro de jornada na editora Globo e na W11), foi escrito por Jakzam Kaiser e fotografado por Werner Zots (consagrado autor de literatura infantil, entre outros gêneros), ambos moradores da ilha de Santa Catarina. Há uma boa introdução sobre os antecedentes das tropeadas e depois um relato minucioso de como se refaz esse caminho hoje, como turismo, terapia, lazer ou aventura.

E temos ainda um romance fundador, o clássico Pampa em 23, de Ubirajara Raffo Constant, lançado em 2004. Estou mergulhado no livro do poeta, artista plástico, romancista e cenógrafo Bira Tuxo, como é carinhosamente tratado em Uruguaiana, e vou dedicar uma edição do Diário da Fonte só para ele. Mas destaco, para efeitos desta edição, um trecho em que seu magnífico livro, obrigatório em todos os sentidos, aborda as tropeadas como elemento de um ambiente maior, o da construção do Rio Grande do Sul. As tropeadas são apenas um detalhe dos antecedentes da grande luta em 1923. Para chegar ao início do século vinte, Ubirajara foi fundo e resgatou uma História riquíssima em humanidade e bravura. Só o capítulo II, em que Honório Lemes, o grande guerreiro, aparece na estância e é recebido com bandeiras, já vale o livro, que tem quase 500 páginas e ainda passa desapercebido por esta Indiferente, a crítica literária brasileira. "Pampa em 23" está entre as obras fundamentais da nossa cultura e precisa ser lido e analisado para que, pelo menos na literatura, haja justiça.

A diferença de Bira Tuxo em relação ao programa e ao livro de Jackzam e Werner, é que "Pampa em 23" foca na guerra o quadro de formação da nacionalidade no sul do País. O que fica mais ou menos intocado no Globo Rural e no Aventura (nem poderia ser diferente, pois os propósitos são diversos) é a complexidade da luta que definiu a História. Nem gostaria de adiantar muito, por enquanto, o que encerra o romance de Bira Tuxo, pois tenho me dedicado a ele a maior parte do tempo e o resultado sairá ainda nos próximos dias. Mas nele podemos aprender, entre muitas coisas, a independência e ao mesmo tempo a submissão das ações do pampa em relação aos países coloniais. O romance coloca o dedo na ferida e expõe fatos surpreendentes sobre uma série de acontecimentos, especialmente sobre a luta guaranítica, que foi abordada superficialmente neste domingo no Globo Rural no depoimento de um índio guarani diante do monumento ao herói Sepé. Na TV, a tropeada começa na Argentina e seu link com as minas de Prata de Potosi. No romance, a tropeada tem um foco mais de América Portuguesa, mas em ambos está destacado o papel da Colônia do Sacramento, aquela porção de terra que poderia ser brasileira hoje.

E assim, ao correr do teclado, misturo (guardando as respectivas diferenças) leituras e sessões matinais de TV, quando a coragem dos tropeiros, sua vida dura e cheia de lições, assomam na percepção como um fundamento nesta época de tantas incertezas. Tudo é incerto, inclusive as versões sobre nosso passado. Mas o que não deve encerrar dúvidas é a nossa vocação para a nacionalidade, a importância de termos um país e vermos nele o que há de grandeza e permanência.

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