31 de agosto de 2006

REALIDADE ENCANTADA




Este texto inaugura meu período como cronista diário, interino, na coluna do jornalista e escritor Sérgio da Costa Ramos, do Diário Catarinense, que estará de licença por duas semanas.

Nei Duclós

Há várias maneiras de "encantar" a realidade e a maioria delas incomoda o vizinho. Música alta, dosagens de álcool, drogas de diversos tipos: há uma fuga em massa para estados alterados da consciência, para usar uma expressão quase antiga, que pertence a esse passado próximo, que antecedeu a atual exaustão do mundo. Os tipos mais inofensivos de escape dos excessos do noticiário (essa mesmice embalada pelo tom novidadeiro) são os hobbys, mas parece que estes estão em desuso. Não há mais concentração para colecionar figurinhas e quando isso ocorre há uma decepção coletiva que joga os álbuns de volta ao buraco escuro de onde vieram.

Uma das formas mais poderosas de ver a realidade com outros olhos ainda é a busca de informações ocultas e isso nem sempre tem a ver com ocultismo. Garimpar o conhecimento desprezado, o livro jogado fora pelo tempo, o episódio obscuro da história, o enigma de uma paisagem assombrosa que incendeia a imaginação: esse é o caminho que mais frutifica ao optarmos por descolonizar o olhar, para usar uma expressão do antológico fotógrafo Walter Firmo.

É certo que essa atividade pode descambar para situações sem importância, como empilhar curiosidades ou usar o acervo acumulado para se diferenciar nas conversas. Mas o mais gratificante é que a caça de algo que passou despercebido, a nota de rodapé que abre uma porta infinita de possibilidades e especulações, nos ajuda a transcender esse hábito forçado de ter de encarar tudo da mesma maneira, todos os dias. Uma das mais fecundas atividades humanas hoje é peitar esse eterno presente, definido por uma série de forças do obscurantismo, como se ele fosse nosso único destino.

Um tema recorrente no cinema e na literatura é a viagem de volta às origens, quando se tenta resgatar o elo perdido, o deslumbramento da primeira visão do mundo, o ambiente que nos formatou nos primeiros anos. Essa viagem hoje é facilitada pela quantidade gigantesca de informações disponíveis, em que é possível reencontrar pessoas, lugares e reviver situações. Há o perigo de ser uma travessia saudosista, geradora de mais frustração, mas a busca pelas raízes pode transpor o umbral doméstico e encontrar, no Mito ou na História, territórios férteis para nele podermos habitar nosso coração.

Uma das minhas alegrias no longo período em que vivi em São Paulo era visitar os sebos perto das Arcadas, a Faculdade de Direito, no centro da cidade. Livrarias antigas com vários andares de obras perdidas faziam a festa da minha curiosidade. Aos poucos, fui perseguindo aqueles livros de uma só edição que deixaram de ter importância e que estavam à mercê das traças. As preciosidades forneciam a cola onde grudava acontecimentos conhecidos, que na superfície não faziam muito sentido, mas lá no fundo da estante ou da gaveta guardavam a chave de muitos enigmas.

O importante é não se conformar com o que sabemos ou vemos e encarar com ousadia o mistério, sem dar importância para as críticas. Pois sempre haverá quem diga que as coisas não são bem assim como você está percebendo, e que não é "bem por aí". O conceito de "por aí" é vasto e serve para desviar vocações, tirar o fôlego antes da alguma caminhada. Dê de ombros, como se dizia há tempos. Você está prestes a chegar ao deslumbramento.

RETORNO - 1. Algumas confusões de crédito estão pipocando. Minha crônica "O último Duelo" foi assinada por Jaime Ambrosio, por um erro da edição. A crônica de Maicon Tenfen sobre a Marquesa de Santos foi assinada por mim, também erro da edição, já apontado em Errata no último Donna DC. E hoje, na inauguração do meu periodo como interino, a crônica acima não tem meu nome no site do Diario Catarinense, mas isso será corrigido ao longo do dia. Na edição impressa, está correto. Saiu no caderno Variedades de hoje. 2. Imagem de hoje: Cacequi, de Anderson Petroceli.

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