23 de dezembro de 2006



A CEIA DE TIA SARINHA

Nei Duclós


Todo ano Tia Sarinha ficava num canto da ceia do Natal e falava tudo o que lhe vinha à cabeça. Era um pilequinho tradicional, dizíamos, mas hoje vejo que sua presença significava mais alguma coisa. Tia Sarinha tinha o rosto das fotos antigas, daqueles emoldurados com cabelos pretos, blusa abotoada até o pescoço, uma pinta no rosto, que nunca sabíamos se era de verdade ou enfeite. Trazia os olhos puxados de uma ancestralidade índia e o rosto liso e branco da ascendência italiana.

Víamos Tia Sarinha uma vez por ano, exatamente na véspera de Natal, quando cruzávamos a meia noite com os ingredientes tradicionais, do peru às nozes. Quando muito pequenos, nos encantavam também algumas invenções caseiras, como o guaraná na salada de frutas. Enquanto avançávamos na idade, mais próximos ficávamos do pileque natalino que era marca registrada da Tia Sarinha. Experimentávamos o malte forte de um uísque trazido em grandes caixas e bastavam duas doses para começarmos a fazer e a dizer bobagens.

Mas isso só acontecia depois que cruzávamos outros ritos de passagem, como entrar no ginásio, dançar no primeiro baile, ficar sozinho no acampamento da pescaria. O Natal era a celebração de nossas pequenas conquistas e meu pai juntava toda a família para que pudéssemos ver o que tínhamos vivido em cada ano. Ou, pelo menos, é assim que eu gosto de entender agora, depois que todos eles se foram, essa geração desassombrada de brasileiros que pegou o país na carroça e nos devolveu no avião.

Tia Sarinha morava em Porto Alegre e era lotada em Palácio, como se dizia, fazia parte dos quadros do Piratini. Quando ficava alta gostava de brincar com a estampa, que encantava as mulheres, de determinado governador. Era uma forma debochada de ver o próprio trabalho, e nós rolávamos de rir. Ganhávamos assim o combustível da mesma anedota para o resto do ano: a tia que comentava o emprego burocrático e se divertia à custa dos sobrinhos e outros parentes na casa da sua irmã rodeada de filhos.

Tia Sarinha apresentava-se solitária, com a aura dos espíritos independentes. Sua vida pessoal era um segredo bem guardado para nós, sobrinhos menores que não compartilhávamos jamais qualquer detalhe do mundo adulto. Nunca soube quase nada dela. Foi casada, separou-se ou enviuvou, depois morava só ou com amigas fiéis. Reservada, tinha um relacionamento distante, quase frio, com a criançada que via de vez em quando. Mas toda essa carapuça caía por terra quando, depois do vinho, da cerveja e até mesmo do uísque, ela se punha a matraquear a fala recorrente nas ceias de Natal.

Enquanto todos eram mais ou menos bem comportados, Tia Sarinha se destacava pela extrema liberdade de dizer naquela hora o que imaginava ser importante. Nem lembro exatamente quais os assuntos que ela abordava, mas o importante é que era a única voz dissonante num mundo que eu acreditava imutável, eterno. No fundo, talvez, Tia Sarinha queria nos alertar para o que viria depois. Passando sua vida dentro do Palácio, no miolo dos acontecimentos principais do estado, vendo como o país evoluía da agitação à ditadura, Tia Sarinha soltava seu verbo nas noites de Natal para dizer que tudo o que nos rodeava era precário, escasso e teria fim algum dia.

Ela fazia parte de uma família que teve a amarga experiência na infância de ficar órfã de pai. Por isso possuía a aridez dos espíritos que muito cedo precisavam se cristalizar em alguma frieza para sobreviver. Quando chegava o Natal, separada de todos, num canto da mesa que lhe pertencia por tradição, ao lado de seu copo que entornava só nessa ocasião, ela era a cálida voz de uma época que se despedia. Éramos pequenos demais para saber disso. Apenas a víamos com suas excentricidades.

Mas ela fazia parte do Tempo que mostrava a cara: distante, de rosto duro e com uma aura de tristeza. Só mesmo o Natal para romper com aquele velado sofrimento. Era quando Tia Sarinha escancarava o que tinha de melhor. Sua personalidade cheia de verve, com tiradas inesquecíveis, marcou profundamente os Natais da minha infância. Aqueles que não voltam, porque sempre estarão conosco.

RETORNO - 1. Crônica publicada neste fim de semana no caderno Donna DC, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: a pintura de Juliana Duclós sobre lua, céu e estrelas. 3. Meu irmão Luiz Carlos me liga para desejar feliz Natal e diz que gostou da homenagem à tia Sarinha. 4. Daniel e Carla Duclós chegam de Sampa e já começam a matar as saudades do amigo Oceano Atlântico. 5. Miguel Duclós incorpora mais um ebook na seção de textos introdutórios e biblioteca do site Consciencia. É o antigo manual de Manuel Garcia Morente "Fundamentos de Filosofia - Lições Preliminares". 6. Ida Duclós escreve sobre seu avô baleeiro no seu blog, cada vez melhor. 7.Feliz Natal para todos.

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