25 de dezembro de 2006

SEGUNDA-FEIRA DE NATAL





O dia de Natal tem tudo para ser domingo, mas não é que me cai numa segunda? O motor da semana, já emperrado por tradição no primeiro dia fatídico e útil, entra em repouso e faz algumas revelações. A primeira delas é o pássaro amarelo, de tamanho médio, e que não é um bentevi (tem a qualidade do silêncio no bico) faz evoluções na grama do quintal e dá um passeio, meio rei destes domínios. Depois se manda. O beija-flor verde escuro, especialista em manter-se em zigue zague por entre escassas flores, faz composição com os vários tons de verde das plantas, desafiando o olho cansado a acompanhá-lo. A pátina do amanhecer amassa fiapos de nuvens no céu que se avizinha azul recém pintado, mas esse aspecto diáfano da alvorada vai cedendo ao sol que se agiganta e promete praia. Uma gripe te deixa dúvidas se deves visistar o mar, agora tão perto e tão distante nos longos meses de frio. Há quero-queros no ar. Eles fazem sua sentinela, mesmo sem pampa. Onde houver natureza e gente, lá estão eles, a provocar a percepção com vôos e gritos, chamando a atenção da criança, que tenta imitá-los com a garganta afinada de soprano. Agora os quero-queros toldam o céu. Será uma praga? Ou é novamente a fronteira que me envia sinais?

COLEÇÃO - Tenho revisitado este blog para ciscar poemas e vejo que, reunidos, já formam praticamente um novo livro. Fico assombrado com a quantidade de trabalho investido nele. Às vezes me sinto tão fluvial quanto o Emilio Salgari, que escreveu sem parar e não conseguia colher os frutos de tanto esforço. Tem gente que pegou Outubro desde 2004 e está lendo cada post. O Diário da Fonte é uma vitrine informal do nosso tempo. Eleições, referendo, datas importantes, junto com poesia, crônica, conto, ensaio, tudo conflui para no futuro existir uma coleção de brochuras, dessas que se acomodam nas estantes e vão sendo manipuladas por várias gerações. É o sonho de todo escritor, principalmente os que são reconhecidos apenas em alguns círculos e que ainda não alcançam o grande público. Escrever todos os dias, produzir alguma coisa e colocar no ar: eis o ofício sem trégua ao qual nos entregamos. A partir dessa produção, posso abastecer inúmeros compromissos, já que o primeiro alô que dou ao dia é aqui, neste espaço próprio, inventado por pura necessidade e vontade de lançar pontes por cima de todas as águas.

ENCONTROS - Pessoas me escrevem e dizem: não sei se lembras de mim. Lembro de todos e de tudo. Este ano foi pródigo em reencontros. O diagramador Faraó, da Ilustrada, o fotógrafo da Fiesp Paulo Gil Soares, a repórter Jailda, além de pessoas que me conheciam pelos poemas, como Rodrigo e Gislaine, conhecer Gerson Pasa, que muito menino descobriu meu livro Outubro perdido numa estante do seu colégio. Tudo isso é alegria pura. A internet é um paradoxo: voa tão breve, depois de leve oscila, precisa que haja vento sem parar, como disse Vinicius. É virtual, na prática não existe. O que pega é o link que faz entre as pessoas, tão distantes entre si e que se aproximam na grande rede. Tenho amizades virtuais completas, ou seja, conheci pela internet, brigamos digitalmente, fazemos as pazes e até conversamos como se fosse num boteco à beira mar. Nada substitui a realidade, mas o que temos serve. Pelo menos é melhor do que ficar passando.

INFÂNCIA - E a segunda feira de Natal? Nada a fazer, nem mesmo balanços. Acordar com a comida já pronta, tomar aquele guaraná amanhecido de tão bom, partir para a areia e a água salgada, fazer as pazes com o corpo, se espreguiçar. Enfim, uma segunda-feira perfeita. Com direito até a um Papai Noel criado coletivamente e que encantou minha neta com um presente daqueles grandes, que a deixaram distraída por horas. Na hora de dormir, lá se foi ela carregando seu tesouro. Nada existe igual à infância. Deus criou a infância. A idade adulta é criação nossa.

RETORNO - Imagem de hoje: uma das magníficas mandalas de Paulo Gil Soares.

EXTRA - Morre, na véspera do Natal, João de Barro, o Braguinha, nosso compositor maior. O destaque na mídia é para a morte de James Brown, claro. Braguinha foi enterrado a partir de 1964. Lembro de uma entrevista dele nos anos 80, em que dizia ter na gaveta 200 músicas e que ninguém queria gravar. Na era Vargas, o talento tinha oportunidades e canais de expressão. As políticas públicas culturais eram a favor da criatividade do povo. Um dia entrevistei Zé Keti e ele me cantou inúmeras músicas inéditas, uma mais linda do que a outra. Nunca ninguém gravou. Tudo isso aconteceu a partir de 1964. Foi de propósito. Braguinha continuava vivo e compondo, mas não servia mais. Sua longevidade era um incômodo. O governo, todos os governos pós 64, estavam muito ocupados em enterrar a nação. Os sonhos mais lindos sonhei, escreveu Braguinha na sua versão de Fascinação. Sonhamos contigo, gênio. E agora, culpados, o enterramos.

Agora ouça o Hino a Getúlio Vargas, composto por Braguinha em 1958:

Getúlio Vargas,
Tu vais na História ficar.
Deixas os braços do povo
Para subir ao altar.

Getúlio Vargas,
Teu vulto audaz, varonil,
Há de ficar para sempre
No coração do Brasil.

Dorme, teu sono tranqüilo,
Dorme que a tua bandeira
Há de pairar altaneira
Sempre no azul da amplidão.

E as gotas que deste de sangue
Teu povo amigo há de tê-las
Brilhando junto às estrelas
No dia da redenção.

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