6 de março de 2007

DOIS FILMES FORA DO CIRCUITO






Consta que dois filmes que vi em dvd nem passaram pelo circuito das salas de cinema. São cerebrais demais, apesar de superproduções. Têm diálogos demais, apesar de haver ação o tempo todo. Têm idéias demais, mesmo sendo apresentados como um blockbuster qualquer.
Ou seja, são filmes excelentes que fogem do esquema da burrice reinante, ao envolver atores de primeira linha, diretores-autores e roteiristas cult. O tema que abordam é o mesmo de sempre: a América, sua paixão e seu delírio; o mito americano, suas contradições, carisma e culpas. A intenção é tornar possível viver na América de hoje recosturando a idéia de nação, numa confecção mais ampla, para tirar o pó do charlatanismo pseudopatriótico e reencontrando as fontes de uma legitimidade que agora lhes escapa com a guerra do Iraque. Mas quais são estes dois filmes deslumbrantes? A grande ilusão (All the king´s men), de 2006, e O Alamo, de 2004.

Ambos usam histórias que geraram filmes anteriormente, mas nada têm a ver com esses ancestrais. “A grande ilusão” tem um antecedente ilustre, feito em 1949, e é baseado no escritor, ganhador do Pullitzer com esta obra, Robert Penn Warren, um sulista idolatrado também como poeta. A história é baseada no governador da Luisiana, Huey Long, que nos anos 30 peitou grandes corporações de petróleo e a máfia corporativa que mandava nos serviços públicos, e que acabou assassinado quando era senador. Huey pregava seu programa, oposto ao do New Deal de Rossevelt, sobre distribuição de renda na América da Depressão. Tinha o voto do povo e dava dor de cabeça. Claro que seu assassinato “nada tem a ver” com o que pregava, chega de teoria da conspiração, certo?

Robert Warren, que fora contratado como professor na universidade criado por Long, mergulha, no seu romance, em dilemas éticos de um jornalista que assessora o governador fictício. No filme, Jude Law faz o jornalista e Sean Penn o governador. A maldade da crítica americana não perdoou e disse que Penn parece Joe Belushi imitando Joe Cocker em Woodstock. Torceram o nariz para a magnífica performance de Penn, este ator que emerge para o primeiro posto enquanto Al Pacino se aprofunda em bobagens de todo o tipo. A direção é de Steven Zaillian, mais conhecido como o festejado roteirista de A Lista de Schindler. Ele opta por um clima noir, com narração de um cínico lúcido, como nos antigos filmes de detetive.

Há ainda coadjuvantes de luxo, como James Gandolfini (um surpreendente mafioso que ascende pela política), Anthony Hopkins, perfeito como o juiz que tenta encobrir o passado, Mark Rufallo, que faz o dândi em decadência que acaba se envolvendo nas artimanhas da política, e Kate Winslet, rejeitada pelo seu grande amor, o jornalista que tem dúvidas sobre a própria sexualidade (tanto é que esnoba a princesa e se atira nos braços do político carismático e, por força das circunstâncias, corrupto). O filme é, além disso, uma aula sobre a geografia da Luisiania, de New Orleans a Baton Rouge. Há tanto o que ver e notar que fica difícil fazer uma resenha que paire acima de seus elementos de formação. É preciso citar bastante, o que me deixa pouco à vontade para analisar sem as amarras desse fardo de informações.

Mas a gente tenta. “Todos os homens do rei” (título inspirado em Lewis Carrol e depois clonado em “All the president´s man”, sobre Watergate – eu não disse? é elemento demais) é uma necessidade da cidadania em pânico hoje diante do governo Bush. A podridão da política que enlameia os talentos e as consciências invade as mentes cansadas dos criadores contemporâneos de cinema, que procuram se refugiar, não na negação da América, mas na abordagem de suas culpas antigas.

Uma dessas culpas é o roubo do Texas dos mexicanos. Como fazer algo convincente sobre um episódio tão sinistro? Pois “O Alamo” consegue. Não tira a razão dos mexicanos, mas justifica a luta pela situação criada na época, em que americanos, mexicanos e texanos se uniram para fazer um país independente. Segundo o filme, o novo estado é fruto de uma luta e das necessidades de uma população ameaçada pela ditadura do centralismo. Sabemos que os americanos não suportam vizinhos e tudo fazem para engoli-los. Assim mesmo, o Alamo é um filme soberbo e merece ser visto. Dirigido por John Lee Hancock (que substituiu Ron Howard, que exigira o dobro do orçamento) e com roteiro, entre outros, de Stephen Gagham (um dos mais prestigiados roteiristas atuais), o filme tem no elenco Denis Quaid (que substituiu Russel Crowne depois que Howard se retirou da direção) como o General Sam Houston; Billy Bob Thornton, estupendo, como um Davy Crockett que desdramatiza o próprio mito para reencarná-lo em nova roupagem, mais adequada aos novos tempos, e o genial Emilio Echevarria, que faz um napoleônico general Antonio Lopez de Santa Ana. É de Emilio a melhor fala do filme: se não houver sangue e lágrima agora, diz, as próximas gerações de mexicanos vão mendigar migalhas dos americanos.

Estão aí os principais dados. Resta pouco espaço pra a análise: a América precisa ser recosturada para continuar existindo. Não basta deitar sobre mitos antigos, defasados (o velho Crockett foi interpretado por John Wayne nos anos 60). É preciso regatar a História e redescobrir nela os motivos dos eventos, a lógica da nação, a linhagem das personalidades. Thornton, quando descreve um massacre de índios, é lapidar: a memória é resgatada praticamente sem emoção, mas provoca náuseas na platéia e no próprio narrador. Mas há o tom de que aquilo foi definitivo e nada pode mudar. A América se encara de frente e lambe suas feridas, mas não abre mão de suas conquistas. Injusto? Certamente. Mas do jeito que é filmado, absolutamente brilhante.
RETORNO - 1. Imagens de hoje: Thornton ao centro, na foto de cima e Sean Penn, na de baixo. 2. Só a cena da batalha que definiu a posse de O Alamo levou um mês para ser filmada. É de tirar o fôlego. 3. O making of de O Alamo é magnífico, cheio de detalhes sobre a saga que foi fazer o filme. 4. É importante dizer: nem o novo Alamo é um faroeste nem o novo All the King´s men é um filme noir, apesar dos cruzamentos. Ao substituir a velha roupagem dos mitos, o cinema se transforma em outra coisa. Ainda não sabemos o que é.

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