26 de maio de 2007

A CIDADE SEM ROSTO

Nei Duclós

Revisitei a grande mancha urbana sobre o país e o planeta. Criaturas sem rosto, ocultas sob camadas de vidros escuros, disputavam a última fronteira, o exíguo espaço disponível das ruas e avenidas. Há um esforço para diminuir o massacre visual promovido pela fúria dos mercados, mas permanece intacta a brutal indiferença de quem se acostumou à barbárie. Relembro a visita que fiz ao poeta Mario Chamie, o poeta de “Lavra, Lavra”, então secretário da Cultura da Metrópolis. Ele me explicou que a cidade de Mario de Andrade é uma pequena parte da megalópole, que agora se estende ao infinito, especialmente para os que chegam de fora e se assombram com o que vêem.

Minha memória chega até um pedacinho minúsculo da Mata Atlântica, onde se refugia Lina Bo Bardi, a arquiteta italiana que veio primeiro para Salvador, onde plantou a semente da vanguarda baiana junto com um grupo de pensadores e artistas. Ela toma um licor em minúsculo copo e me conta como convenceu o governador Ademar de Barros que ela era a pessoa indicada para projetar o prédio do Museu de Arte de São Paulo, a inverossímel estrutura mais leve do que o ar implantada na Avenida Paulista. Lina fala sobre o antigo Trianon, lugar de encontros da capital do Modernismo, onde fez furor com um vestido que era pura performance.

Palmilho na lembrança a espessa nuvem de fuligem que eu atravessava diariamente para chegar à redação da Folha de S. Paulo, onde trabalhava. Por muitos meses me perdi naquelas ruas do centro, tomada então pela falta de identidade imposta, o barulho em meio a prédios antigos e arrojados. Caminhava acompanhado por jornalistas e escritores, todos teóricos da cidade que nos envolvia como um monstro sem nome. Alguns celebravam o horror, outros se despejavam sobre o rio Tietê. Só quando vi o Tamanduateí pela primeira vez descobri de verdade o crime cometido contra a bacia hidrográfica que sepultou fontes e rios. O poderoso rio, em tempos de enchente, vibrava suas águas tormentosas sobre o trânsito em pânico. Era um pedido de socorro, que se perdia em meio ao rugir de motores.

Admireava os moradores mais antigos, que viam lógica no labirinto de concreto. Como poderiam se orientar em pleno caos? Vindo de uma cidade em linha reta, uma espécie de resposta ao pampa ondulado, e de outra cidade-ilha em curvas, resposta ao horizonte do mar que a cerca, não conseguia atinar no conceito que fazia de São Paulo um enigma, e mais tarde um pesadelo.

Mas lá, no coração urbano disforme, encontrei a força adormecida que me guiou para um convívio com mentes privilegiadas. Cercado por pessoas que faziam parte de um sonho maior, o do país que precisa transcender suas origens, descobri que não se pode brincar de viver, nem adiar a luta que enfim nos alcança, em qualquer quadra ou idade.

Quando chegou o tempo de abandonar tudo, para reencontrar o que perdi nesse esforço, vi o quanto tinha me transformado e o quanto precisava remar de novo em direção ao que me formara. O país, em sua grandeza, oferece todas as situações para que a cidadania se consuma e o espanto de permanecer na terra alce vôo.

Revisitei a ocupação desordenada que não tem mais remédio. Vislumbrei as relações humanas endurecidas, mas conservo em mim as amizades sólidas que foram construídas em décadas de determinação. Quando alguém muito moço diz que vai migrar para lá, torço por ele. Quero que cumpra seu destino passando pela Meca do país exagerado, a nação que nos marca de maneira definitiva. Em qualquer país por onde passarmos, seremos identificados pelo andar, pela voz, pelo olhar. Somos uma raça de sobreviventes. Viemos do Brasil profundo, temperados pela vivência da cidade que não nos dá trégua.

Já não fazemos parte do jogo bruto da cidade esmagadora. Talvez nunca tenhamos vivido realmente lá. De tudo o que São Paulo oferece, selecionamos apenas uma porção, a mais próxima possível do que estamos acostumados desde o início dos tempos. Foi assim comigo. Minha São Paulo ia do Butantã a Cerqueira César, o bairro inventado pelo pai de Oswald de Andrade. Com a fortuna arrecada pela família, o poeta radical encontrou tempo para mudar a literatura. Hoje seu espólio se espalha e se perde, enquanto aguardamos a redenção que, parece, não chegará nunca.



RETORNO - 1. Esta crônica foi publicada neste fim-de-semana no caderno Donna DC do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Viaduto do Chá, segundo Marcelo Min.

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