10 de junho de 2007

O PLANETA É FILHO DA AMÉRICA




O mais brilhante e perverso lance de marketing político da atualidade é Uma verdade inconveniente, o documentário de Al Gore que levou o Oscar. Brilhante porque Al Gore se coloca no miolo dos acontecimentos, assume a postura de protagonista de uma luta que parece ser a favor da Terra, mas é simplesmente uma poderosa campanha de esclarecimento anti-Bush – e, de quebra, anti-outros candidatos democratas, como a ex-primeira dama Hillary Clinton, que já está a campo de olho nas próximas eleições presidenciais.

E brilhante porque, ao usar o prestígio, o alcance e a duração do cinema, consegue ser convincente. Seu acervo são os insights da cultura acumulada da comunidade científica para, num tom didático, explicar porque devemos nos preocupar com o aquecimento global. Isso torna o documentário (uma longa conferência com recursos da multimídia) também perverso, ainda mais porque fica evidente a apropriação de soluções que, no fundo, não dizem respeito a todos os povos, mas sim aos votos que ele precisa para chegar onde quer, a Casa Branca.

De cara, na primeira cena, Al Gore se apresenta como o ex-futuro presidente americano. Isso atrai simpatia para quem venceu a eleição e não levou, quando a família Bush deu aquele golpe de estado que desgraçou o mundo, via contagem fajuta de votos, como denunciou Michael Moore em Fahrenheit 9/11. Seu objetivo é retirar o ex dessa constatação. Na seqüência, ele usa as pesquisas científicas para colocar todos os ovos na mesma cesta, sua campanha política. Os cientistas citados, na maioria, são “friends of mine”. Ele é o amigo dos cientistas, portanto irmão da verdade. E se transforma também em irmão da virtude, pois compara o planeta a um filho que corre risco de vida (e não de morte, porque morte não corre risco).


O planeta é como o filho atropelado, que precisa de atenção total e de cuidados. A metáfora é contundente: Al Gore usa o exemplo do próprio filho, que sofreu um acidente grave aos seis anos. A virtude também se expressa na saga familiar. Ele teve a manha de ir até a fazenda onde foi criado para mostrar que os pais deixaram de plantar tabaco, ou seja, de ajudar a produzir cigarros, que provocam câncer, segundo estudos divulgados a partir de 1964. Sua irmã mais velha, que fumava, morreu dessa doença. O episódio familiar serve para ilustrar a necessidade de mudar os hábitos, não mais de maneira lenta, mas de forma urgente.

O que ocorre no planeta ferido pela emissão de gases da revolução industrial, que exibe inúmeras chagas de seu estado de coma, desde o furacão Katrina (empoderado pelas águas do mar aquecidas) até a execrável Pequim, megalópole envolta em gases de carvão (talvez seja por isso que tem tanto chinês espalhado pelo mundo: eles tornaram seu país insuportável)? Acontece que os Estados Unidos são o principal suspeito do crime, pois consome mais do que todo mundo. Os americanos estão cavando seu próprio túmulo e precisam acordar enquanto é tempo. Para isso, é preciso despertar as consciências.

Onde estão estes formadores de opinião? Em terras americanas, claro. Gore se dirige a todos os povos do mundo que escolheram os Estados Unidos para viver. É para esse público que dirige sua campanha. Ele precisa de todos os votos e o aquecimento global é um tema que pode galvanizar qualquer pessoa, de qualquer origem. Sua argumentação atinge o catastrofismo bem fundamentado. Seu lance mais significativo é a possibilidade de o monumento às Torres Gêmeas aniquiladas pelo terrorismo serem inundadas. Aí ele toca no coração da América: a luta de Bush contra o terrorismo fica assim inundada por um problema maior e na maré alta desse problema está bem acomodado o próprio Al Gore.

Ao longo do filme, aparecem Bush pai e Bush filho nos seus gestos e palavras aterradores. Aparece também o desfecho da campanha presidencial, em que todos tiveram que engolir o texano bruto, que perdeu a eleição por cem mil votos (a mesma diferença que deu a vitória a Kennedy sobre Nixon). Esse é o tema do documentário, que expõe o auto-centrismo da mente do candidato. É só verificar o papel que nos cabe no imbróglio: o Brasil jamais é citado, é apresentado como uma massa de terra e de plantas ameaçadas pelo fogo (tem mais vermelho nas regiões fora da floresta amazônica do que dentro dela, pois é irrelevante ser preciso, o importante é mostrar como somos queimadores de árvores).

A Argentina, ao contrário, é citada, assim como a Índia. Quando Al Gore se refere ao local onde nos encontramos, ele fala em continentes. Quando aborda a Índia, cita o país. Não somos um país. Somos uma porção do planeta que, no concerto internacional das nações, vai cumprir seu destino de plantation, pois Al Gore prega o combustível verde, o biodiesel, para se opor aos negócios da família Bush, o petróleo.

Podemos imaginar o que vai nos restar se Al Gore for eleito: seremos uma enorme plantação de cana, de norte a sul, de leste a oeste, como se costumava dizer nos anos 40 e 50 (já estamos avançados nesse processo, mas vai piorar). Aqui não existe uma nação. Os americanos reconhecem a existência da Argentina, que não lhe faz sombra, mas tenta ignorar o império brasileiro, a grande nação de vasto território arável, com enormes reservas de água e de outros recursos naturais. A receita de Al Gore é: me elejam presidente, que trarei álcool do Brasil para acabar com a grana do petróleo. Ou seja, seremos o próximo Oriente Médio.

A revista The Economist lamentou a derrota para Bush, em recente editorial em que comenta o documentário. O documentário fez a cabeça dos formadores de opinião. Agora só restam alguns obstáculos, como os outros candidatos democratas, para chegar ao poder. Então poderá se apresentar como o futuro presidente americano. Seus problemas vão acabar.

Um detalhe importante: toda a luta científica contra o aquecimento global é essencialmente americana, na sua visão. Ele mesmo soube do assunto nos anos 70, graças a seus professores. Seus amigos cientistas são todos, ou quase todos, da América. Quem falou primeiro que a Terra é azul? Yuri Gagarin, foram os soviéticos, que nem são citados. O que pega na sua conferência são as fotos das missões Apolo. Mas ele tem o cuidado de citar a bomba atômica, exemplo da tecnologia a serviço da guerra, quase que como um catástrofe natural, como os furacões. A bomba sobre duas cidades superpopulosas do Japão, o massacre de centenas de milhares de pessoas desarmadas, nem sequer foi lembrada como obra americana. Daqui a pouco vão dizer que a bomba é coisa de brasileiro.

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