25 de junho de 2007

O ANTI-VIDAS SECAS


Cinema, aspirinas e urubus, o premiado filme do pernambucano Marcelo Gomes, é como se o pai de família de Vidas Secas, sobrevivente na sua retirada em direção ao sul, encontrasse uma saída: o estrangeiro que chega com uma nova tecnologia, a aspirina (contra “todos os males”, ou seja, a solução final) e a dissemina pela população pobre usando um poderoso instrumento de marketing, o filme de publicidade comercial, ou seja, política.

O alemão Johann repassa para o retirante Ranulpho toda a tralha com que investiu no sertão (o mesmo cenário de Vidas Secas): um carro potente, a própria aspirina, o projetor, os rolos de filmes. O nordestino, até então azedo pela desesperança de morar num buraco e não conseguir sair dele, encontra enfim da felicidade, a herança que o estrangeiro lhe deixou em mãos. É um filme ideológico, que limpa a narrativa até o osso para poder usá-la em benefício de um determinado enfoque histórico e social.

O início do filme fornece a chave para decifrar o enigma. No sertão duro e cru, encontra um lugar a imagem do alemão que fugiu da guerra (seu rosto refletido no espelho do carro em contraposição à luz estourada do Cinema novo). Ele tenta fazer a vida vendendo a panacéia para os desesperados (supérflua, já que reconhece que os fregueses vão inventar a dor-de-cabeça só para tomar o novo remédio). Se Vidas Secas é denúncia (a miséria produzida pela exclusão social e o latifúndio), Aspirinas é pura propaganda (entregue-se ao que é estrangeiro para sair desse impasse).

E propaganda pesada, totalmente anti-Brasil. Em pleno Estado Novo, a agressão nazista recebe como resposta do governo Getúlio Vargas (jamais citado no filme) a declaração de guerra. Seria um governo soberano tomando posição no conflito mundial? Não, apenas isso: seria a intolerância, à moda nazista, chegando aos confins do país continente. Pois Johann vê-se encurralado pela decisão de o governo brasileiro “mandar para os campos de concentração” os alemães que estão no país. Sabemos que não foi nada disso. Getúlio impediu que os descendentes germânicos, que estava no Brasil desde 1824, continuassem a criar guetos racistas, onde ensinavam suas crianças apenas a língua do país de origem e jamais o português. As ações de intolerância, que existiram, não devem ser atribuídas às determinações oficiais.

Mas fica o não acontecido como verdade absoluta. O filme assim se insere na insidiosa calúnia histórica contra Getúlio Vargas, reforçada pelo envio de nordestinos para a Amazônia. Este seria mais um ato infame do governo, segundo a abordagem do filme. Para a selva se dirige o acuado Johann, depois de jogar seus documentos, passaporte incluído, na caatinga, sob a guarda das cascavéis. A maneira como o roteiro costura os campos de concentração à migração forçada para a Amazônia fazem de toda obra mais uma ferramenta para destruir a imagem e a herança de Getúlio Vargas. Sabendo que o filme foi generosamente cacifado pelas instituições do governo atual e do mercado financeiro, podemos também fazer nossa costura: trata-se de mais marketing contra a soberania nacional e a experiência getulista de 1930 a 1954.

Mas isso nem de perto passa pelos críticos, deslumbrados com o enxugamento das cenas, com a precisão dos detalhes, com a aparente grandeza da obra. Não se pode apontar o óbvio enfoque ideológico sob pena de estarmos cometendo “injustiça”. Ora, é apenas um filme. Ora, a narrativa se sustenta por si só. Ora, que história é essa de achar que se trata de mais uma peça publicitária anti-Brasil? Que mania de achar defeito em tudo!

Pois é apenas isso. Uma peça de propaganda muito mais poderosa do que os filmes do DIP. Estes, criavam a imagem de um governo sólido num país independente. Por mais criticáveis que fossem, eram peças transparentes, de propaganda oficial. Urubus vai mais fundo: é propaganda muito bem elaborada contra a histórica decisão de lutarmos contra o nazi-fascismo. Ao nos opormos a Hitler e Mussolini, não absorvemos suas ideologias nem suas práticas. Ao contrário: mandamos nossos compatriotas para lutarem na Europa. O sangue dos heróis serviu para retaliar o ataque nazista aos navios brasileiros (uma coisa que nunca me passou pela goela; para mim, foi tudo armação, para forçar o país a entrar no conflito). Mas em Aspirinas, serviu para perseguir inocentes. Até quando essas mentiras serão encaradas como coisa normal?


RETORNO - Imagem de hoje: Johann e Ranulpho, em direção aos seus destinos, em "Cinema, aspirinas e urubus".

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