24 de agosto de 2007

A LIBERDADE EM DEDÉ FERLAUTO


A LIBERDADE EM DEDÉ FERLAUTO

“Peço demissão do cargo de habitante do planeta” (trecho de uma carta de Dedé endereçada a mim, datada de 27/abril/1977)

Foi-se, nesta madrugada de 24 de agosto de 2007, o poeta Dedé Ferlauto, partindo o coração de todos os seus amigos e de uma família brilhante, de um músico (Leo), um arquiteto (Cláudio), um engenheiro (Felipe), mais a família que ajudou também a inventar, mulher, filhos, netos, enfim, todas as pessoas que conviveram com ele nesta curta/longa vida. Palavras não servem de consolo, ainda mais partindo de mim, que há muito tempo não conversava com ele. Soube recentemente que ele estava morando no sul da ilha. Mas, como disse em meu livro Outubro, que Dedé gostava demais: a linguagem é a única arma que eu disponho.

Fui amigo de Dedé, mais intensamente por um tempo, do final dos 60 até o final dos anos 70, quando então nos correspondíamos por carta, eu em São Paulo iniciando uma vida dura na megalópole, ele, mais lúcido, refugiado em Sapiranga, interior do Rio Grande do Sul. De lá me enviou confidências e poemas. Um deles, Furto Qualificado, diz assim: “Por todas as frestas/ de todas as paredes/ desta casa/ muitos olhos espreitam/ consultam/ memorizam/ e sons são sugados,/ magnetizados/ por todos os poros/ da casa/ do corpo/ das palavras(...)”

Tomei conhecimento de Dedé Ferlauto quando vi, colados em azulejos, selos/poemas assinados por Zé Liberdade. Era ele. “Me sinto por fora desta coisas que andam acontecendo entre as pessoas que escrevem, revistas, editoras, livros e outros.”, me escreveu ele anos mais tarde. “Os caras andam muito chatos com essa mania de querer fazer História. Acho um saco. Caí fora. Me sinto sem norte, sozinho e não me assusto”. Via-se como um anarquista. Vejo-o como um outsider sincero, que viveu integralmente sua literatura, a que fisga pela vocação e carrega a criatura escolhida por toda a vida.

Suas palavras, como de todo poeta, são proféticas. Veja o que disse no final dos anos 70: “Ando contrariado com minha vida profissional” (e quem não anda, Dedé? acrescento agora eu). “O que é um jornalista hoje em dia, salvo exceções? Não estou mais aí pra andar informado da merda mundial.” Ele estava em outra: “Enquanto isso vou procurando caminhar com minhas próprias pernas e levando minhas palavras por aí afora, como quem não quer nada. Quer nada? Como quem? Como? Quem? Quer? Nada?”

Numa carta coletiva/manifesto, deixou claro sua ação poética em trechos selecionados de grande lucidez: “É compreendendo a angústia que se resolvem problemas, e concomitantemente é compreendendo-a que ela se dissipa numa grande e violenta atividade de criação. É olhar para dentro, para mim, é tentar compreender as linguagens que nos cercam (como as abelhas, como as plantas, como a biodinâmica, como o ciclo de vida nas plantas, hortaliças etc.) e pelas linguagens que utilizamos para a nossa criação (abaixo a arquitetura, viva a agricultura!). É dentro da angústia, da indecisão, que é possível localizar o desconhecido, o novo. “

Dedé não quis compactuar com políticas, grupos, panelas. Preferiu a solidão poética, a verdadeira, a que jamais consola, pelo sofrimento que provoca, mas a única que garante a liberdade. Ele escolheu a liberdade numa época em que tudo foi datado, classificado, organizado, definido. Por isso Dedé Ferlauto é uma prova viva de que podemos ser criaturas livres, mesmo que isso nos custe uma vida difícil, mas jamais apartada da grandeza.

Foi-se Dedé Ferlauto. Seus agitos continuam. Longa vida à sua obra.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: obra de Ricky Bols, artista da pesada que mora na cidade de todos nós, Porto Alegre. 2. Um perfil completo de Dedé Ferlauto está no blog do jornalista Jorge Correa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário