20 de novembro de 2007

SESSÃO DE AUTÓGRAFOS


Nei Duclós (*)


Autografar é o mais difícil gênero literário. Para cada leitor, é preciso criar uma frase, descobrir um mote, abordar um tema. Também é importante saber temperar o tom, não rasgar o verbo quando o momento pede prudência, nem deixar-se levar pela frieza se a ocasião impõe o arrebatamento. Entre a proximidade e a distância, o autógrafo precisa adivinhar a senda correta para que não haja constrangimento nem frustração, nem a timidez engula a emoção, ou o desprendimento gere inimizade.

Uma sessão de autógrafos é homenagem de mão dupla. A fila paga tributo ao autor e este precisa retribuir, expondo sua arte em estado puro. Pois é de caligrafia que estamos falando, é escrever sobre o papel em branco sem o auxílio das ferramentas digitais, sem o recolhimento necessário para achar a palavra certa. Não basta olhar para o interlocutor rezando para que a inspiração, não agora, o abandone. É preciso sangue frio e um mínimo de planejamento.

O leitor tem um nome que precisa ser lembrado nesse momento, que é o mais tenebroso porão da falta de memória. Amigos de 30 anos ficam sorrindo para o escritor que está com a caneta suspensa na mão. Eles aguardam a prova de tão longo relacionamento, pontuado pelas décadas afora em intermináveis conversas, viagens, segredos compartilhados. São até compadres, chegaram a apanhar juntos da ditadura, mas como é mesmo que você se chama?

Os livreiros já resolveram em parte esse embrulho, identificando, na hora da compra, o aspirante a um autógrafo. Mas isso funciona em parte, pois o melhor amigo rompe todas as barreiras e dribla o assessoramento. E assim dá-se a tragédia. "Por que ainda não autografaste o meu exemplar?" pergunta o fiel escudeiro de tantos anos. "É porque não lembro o teu nome. Deu branco, acontece a toda hora".

Não adianta. Nenhuma explicação é plausível. As grandes amizades não perdoam o que agora se revela apenas fingimento. Não conseguem entender a luta para se chegar até ali com um livro pronto, ter convencido os editores a investir, batalhar para que algo saísse na imprensa, fazer questão do verniz na capa, exigir um reparte de muitos livros para distribuir entre os resenhistas, milhares, existentes em todas as mídias e em todos os pontos cardeais do país continente.

Não dá para perdoar, mesmo que mil motivos detalhem essa briga. Não é um caminho fácil até sentar-se, enfim, na frente de alguém que se abalou de casa só para comprar seu livro e ter o privilégio de um autógrafo, que será exibido nas estantes, nas conversas, nas travessias. Quando todos se forem, e vir aquela jovem estagiária saber como era "aquela coisa" de estar vivo no início do milênio, então o primeiro leitor, o que chegou a ler o livro nos originais, com as mãos trêmulas, irá abrir o raro exemplar daquele escritor esquecido, mas agora cult.

Os garranchos eternizados em tinta azul são os vestígios definitivos. "Está aqui", dirá, mostrando, orgulhoso, sua prenda. "Para o meu grande amigo Fabiano, estas histórias que o tempo não leva". Haverá súbito silêncio. "Mas o senhor não se chama Fabiano. Pelo que eu saiba, seu nome é Márcio", replicará a estagiária. Ela terá então uma vaga noção daquele drama, a sessão de autógrafos, o mais maldito dos gêneros literários.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 20 de novembro de 2007, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: foto de Anderson Petroceli. 3. Com grande destaque, o editor e escritor Edson Cruz colocou na capa da sua importante revista literária Cronopios, meu conto Írio e os animais.

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