18 de janeiro de 2008

BANHO DE APITO


Seis bandeiras vermelhas pontificam numa faixa de areia de uns 300 metros. Entre duas delas e a cada 50 metros de cada uma, é proibido tomar banho. Quem se aventurar em território vedado será expulso pelo apito dos salva-vidas, prestimosos na sua ação preventiva. Sobra quase nada de lugar permitido, especialmente quando o dia está esplendoroso e o verão a pleno.

Como os banhistas costumam chegar cedo na areia e escolher livremente seus pousos, é exatamente nessa escolha que a estridência decreta a abstinência. Vemos então como, penosamente, as pessoas que cruzaram serras e planaltos para chegar até ao sopé do morro lavado de sal, obedecem os ditames de uma lógica que não está clara para ninguém. Já perguntei mais de uma vez quais são os critérios, que parecem ditados pelo bom senso, mas mudam de lugar como as bandeiras fincadas a esmo.

Se você insistir, os caras ainda te rogam praga. Ouvi um deles dizer: “Por mim, podem se estatelar nas pedras que eu não estou nem aí”. Nesta estação em que existem inúmeros acidentes, pode pegar mal falar essas coisas de um serviço tão importante. Mas para tantos afogamentos, cabe a pergunta: o que vocês estavam fazendo na hora do perigo?

Não há como se insurgir contra os sarados caras de calção vermelho e camiseta amarela. Pelo menos, por parte da população mais cordata, que sofre de fato o apitaço. Os teimosos, ou por excesso de testosterona, ou pela postura voluntariosa das minorias emancipadas, não estão nem aí. Não obedecem às ordens e até mesmo se aprofundam para lá da arrebentação, só para contrariar.

Enquanto isso, somos deslocados de um lado para outro. Queremos a todo custo evitar o apitaço, que vem de uma autoridade inconteste, que nos coloca como bestalhões irresponsáveis. Talvez o objetivo seja o de impedir o banho do mar para evitar trabalho, talvez seja pior do que isso. Será que apitam para os banhistas compartilharem a mesma sina, de renúncia sob o sol a pino? É possível que tentem repartir os ossos do ofício, como os serralheiros que infernizam a vida dos outros só porque concentraram todas as virtudes no próprio trabalho.

Minha desconfiança tem base. Não faz muito tempo, existiam várias bandeiras, sob a guarda de atletas atentos, a cavaleiro em suas altas casamatas, ao contrário do que ocorre hoje, em que o salva-vida se mistura na areia como um veranista. Com bandeira branca, o banho era liberado; amarela, atenção; vermelha, alerta; e a preta, proibição total. Eram levados em consideração o clima, o vento, a chuva, a força do mar. No janeirão, as bandeiras branca e amarela imperavam. Difícil ter bandeira vermelha, dia de ressaca, ou de prenúncio de tempestade. Ou ainda preta, espécie de ameaça de um apocalipse localizado.

Hoje, segundo a avaliação do rigorosos salva-banho, correntezas suspeitas provocariam choques laterais que nos levariam para o buraco. As ondas que quebram mansas não são mais as crianças do mar. São todas traiçoeiras, se enredam em nossos pés e querem nos carregar, enquanto os bravos rapazes, os quais jamais vi em ação, nadando, ficam em grupos admirando a proibição em massa.

Devemos nos calar e somos tocados para lá e para cá, rebanho insosso de carnes cansadas, mitigando mar enquanto o mar nos é negado. Mas o que nos dá algum sossego é o assédio de algumas garotas, encantadas não só com o físico, mas com o poder dos apitadores. Enquanto se distraem, aproveitamos para cumprimentar nosso velho conhecido, o Oceano Atlântico.

O mar é indiferente ao que aprontam na sua beira. Ficamos bem na beirinha, longe de qualquer perigo. Ninguém precisa nos impedir de peitar a onda. Se alguém for colhido de surpresa, aí sim o fôlego gasto no apito terá sua prova dos nove. Certamente há valor em quem se dedica ao trabalho insano enquanto os outros aproveitam o mar. Mas só naqueles que não demonstram ressentimentos contra os banhistas e estão realmente impregnados de algo que sumiu do mapa, o espírito público.

Que existem, existem, e devem ser homenageados. Os outros, mais vistosos, precisam ser chamados às falas, pois exercem os poderes dos pequenos tiranos, sob pretexto de que estão protegendo as pessoas.

RETORNO - Imagem de hoje: Homer Simpson, o herói de Marge.

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