21 de maio de 2008

O SUSTO DA ESTRADA

Chegar ao anoitecer numa cidade desconhecida, ou acampar numa paisagem selvagem; batalhar comida entre desconhecidos que o condenam no olhar; pedir pouso quando todas as portas se fecham; ficar à mercê da barbárie; passar fome no meio do lixo; cansar as pernas atrás de uma porta que se abra; e, pior, explicar o que você está fazendo ali para quem está obcecado pela própria pergunta, jamais pela resposta; são os pesadelos recorrentes de quem optou pela estrada, por diferentes motivos. Acabo de ver Into the Wild (Na Natureza Selvagem), o road movie de Sean Penn, de 2007, sobre o bem nascido que deixou tudo de lado para viver esse tipo de experiência.

São motivos opostos. O garoto, que se auto-denominou Alexander Supertramp, queria tirar o excesso de sua vida: o dinheiro, a posição social, a identidade, o futuro em Harvard. Nós, classe média empobrecida pela política econômica da ditadura, e jogados contra a parede por meio da intervenção da universidade, queríamos encontrar o que tínhamos perdido: uma vida com algum sentido, onde houvesse lugar para o sonho, a felicidade, o prazer, a emoção. Há um gap de vinte anos entre nossa história, do fim dos anos 60, e a de Christopher McCandless, o Supertramp, que é do início dos noventa. A origem e os objetivos das duas viagens, tão parecidas, são diferentes.

Nós tivemos sorte em não acabar como Chris, ilhados no ermo, passando necessidade. Talvez porque fôssemos mais acostumados à escassez. Não havia muita oposição entre nossa vida normal de estudantes sem recursos e a que levamos na estrada. Não tínhamos futuro, fomos procurar um. Chris fugia do futuro. O filme é deslumbrante, mostra esse deserto horroroso que é os Estados Unidos de maneira grandiosa e poética.O personagem é irritante, pois caminha firme para o suicídio com a certeza de que está fazendo algo de bom para si.

Ele está destruindo a própria família, a vida que o embalou e desprezando o papel fundamental das pessoas que recolhe pelo caminho. Não enxerga que elas são sua única riqueza. Não é nem a trajetória, mas as relações humanas que o enriquecem, que o chamam para a sobrevivência. Mas ele está disposto a morrer. Não perdoa os pais por terem escondido o fato de que ele era filho bastardo, ou coisa assim. Funde a cuca e se atira no meio da neve como um tarado qualquer. Mas Sean Penn tirou leite de pedra, a partir do best-seller de mesmo nome, de Jon Krakauer, publicado em 1996. Traça umperfil isento do aventureiro, colocando sua grandeza e sua precariedade.

Sean não quis fazer o filme antes que a família aprovasse tudo. Levou dez anos na empreitada. Conseguiu duas indicações ao Oscar, uma de edição e outra de melhor ator coadjuvante, o magnífico velhão Hal Holostrom, no papel do artesão que pede para adotar o abombado em viagem para a morte.

Lembrei o tempo em que tive de dormir em delegacia, rebentar tênis e pernas de tanto andar, cheirar mal todo o tempo, passar necessidade. Viajei em cabine de caminhão, dormi ao relento a quase zero graus, cheguei com os cabelos duros de tanta poeira em pousadas sinistras, como na Lapa do Rio de Janeiro, ou no vasto recinto do estádio Pacaembu, cheio de insetos, em colchões de palha terríveis.

Não era bem a natureza selvagem que queríamos. Nós éramos os selvagens. Queríamos, talvez, reencontrar o Brasil soberano, o que nos escapava pelos dedos no meio de tanta repressão. Queríamos o país de volta e por isso fomos conhecer aquelas cidades tão parecidas e nos banhar em praias maravilhosas, mas cheias de escassez e miséria. Haja coragem na juventude. Haja nós.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Emile Hirsch em cena de "Into the wild". 2. A internet tem tudo. Assista essa entrevista de Sean Penn sobre seu filme.

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