23 de maio de 2008

OS LIVROS EM “GANHANDO MEU PÃO”, DE GORKI


Nei Duclós

Li o segundo volume da obra autobiográfica de Máximo Gorki, “Ganhando meu pão”, que faz parte do pacote lançado no ano passado pela Cosac & Naify, com três volumes (os outros são “Infância”, já comentado aqui, e o outro, “Minhas universidades”, próxima leitura). Comprei os livros em separado, pois desconhecia a caixa preparada pela editora e que é oferecida com razoável desconto (um dos três livros quase sai de graça). Portanto, quem quiser navegar nessa lição de alta literatura, é melhor se convencer e adquirir logo o conjunto, pois cada volume dá vontade de quero mais.

É inútil tentar resenhar essa obra monumental nos limites deste espaço. Ainda mais que Boris Schnaidermann e Rubens Figueredo, especialistas no grande autor e também tradutores, destrincham Gorki magistralmente, com prefácios e posfácios valiosos. Seria redundância abordar o significado, o impacto e a grandeza dessa literatura que cruza o Tempo com o frescor das coisas recém feitas e com a força de uma avalanche, despertando o coração de pedra em que nos transformamos. Prefiro colher algumas folhas dessa floresta generosa e com elas descobrir as pistas de uma nova estação.

Em Infância, destaquei algumas cenas, imortais, da narrativa. Aqui, quero focar a relação entre o autor e os livros. Qual a Rússia reportada por Máximo Gorki nesse inesquecível rio de palavras? Aparentemente, é um país mergulhado na miséria e na barbárie. Rodeado por pessoas ágrafas, o adolescente Gorki, órfão e sem recursos, sobrevive à custa do seu esforço físico. O que o diferencia é a leitura de livros que lê à luz de lampiões, apartado de todos, e às vezes compartilhando com operários e velhos exaustos. É tocante cada cena em que os autores russos, lidos pelo jovem autodidata (que foi encaminhado para os livros pelo cozinheiro de um navio que singrava o Volga) emocionam aquela humanidade brutalizada.

Às vezes, chegam a roubar um livro favorito do rapaz para escondê-lo numa gaveta fechada a chave. O que isso nos diz? Que a Rússia produzia uma literatura, no século 19, que se disseminava em rede por todo o tecido social, chegava até os confins da população de todas as formas, seja em sebos onde se alugavam livros, seja por meio de alguns leitores que liam para a coletividade. Por todo o trajeto de sua narrativa, Gorki esmiúça essa relação complicada entre o povo russo e sua própria literatura.

Trata-se de uma sucessão de comentários sobre livros e autores, o que cada um produziu e a referência que eles tinham entre comerciantes, camponeses, operários, entre o povo recém saído da servidão e às voltas com a rudeza do tzarismo décadas antes da Revolução. Não tente detectar qualquer vestígio do chamado realismo socialista nessas palavras de Gorki. Ele as escreveu e publicou antes de 1917. Sua principal observação é que as pessoas reais não estavam reportadas na literatura que conhecia, não apenas estrangeira, mas nacional. Ele sabia do que estava falando. Convivia diretamente com o povo, fazia parte dele e era seu olho consciente.

Vindos de uma realidade rural, se aglomerando em vilas e cidades, a população criada nos ermos tinha a auto-suficência da sabedoria empírica, que despreza o que estava impresso, considerando-o fantasia. Tudo pode ser publicado, observou um dos personagens de Gorki, portanto não preste atenção nisso que você lê. Mas Gorki encontrava nessa relação com os livros o ambiente suportável para trabalhar suas perplexidades. O que mais o invocava era o sem sentido das vidas entregues à maldade. Considerava particularmente nojento o jeito como eram tratadas as mulheres.

Como a grande formadora do seu caráter foi a avó, paradigma de bondade e generosidade, e de alma caridosa e cheia de fé, Gorki se insurgia com a violência que se abatia sobre todas as mulheres, desde as prostitutas até as operárias, passando pelas nobres e pelas famílias com algumas posses. Era um mistério que os homens as tratassem daquele jeito, falando mal pelas costas, açoitando-as e, como aconteceu com sua própria mãe, levando pontapés do marido, padrasto de Gorki.

As pessoas não são boas nem más, são incompreensíveis no seu comportamento, segundo Gorki. Ele tenta decifrar o enigma compartilhando suas dúvidas para quem estiver perto. Se ressente do deboche e das perguntas evasivas. Acha que todos escondem algo dele. Por isso insiste e cada personagem é crivado de perguntas até a exaustão. É uma pesquisa profunda que ele faz, que desenvolve sem as veleidades científicas, mas como literatura de primeira água, saindo dela enriquecido. Acumula sabedoria, ao mesmo tempo em que enche sua cabeça de mais dúvidas.

Nada está resolvido e tudo está por fazer. O que o aguarda na cidade para onde foi tentar ser um universitário? Sabemos que não foi fácil. Mas isso é o que vamos ler. A nova estação a qual me referi tem a ver com o atual estado da literatura brasileira, tão anêmica e cheia de maneirismos. Precisamos mergulhar sem piedade na nossa formação e vivência e descobrir nelas algum resquício de verdade. Sem isso, não sobreviveremos.

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