3 de julho de 2008

A DECISÃO POR PÊNALTIS


A decisão de um campeonato por pênaltis não é futebol. É algo além do jogo, usado quando todos os recursos para definir um vencedor foram esgotados. É um desempate que usa lances conhecidos, como o chute a gol, a defesa, a paradinha, o vôo sobre a bola. Mas se situa fora do sistema, porque seus elementos principais não pertencem ao futebol.

Vamos pegar o mais notório exemplo de extravagância desse tipo de decisão: o direito que cada time tem de chutar cinco vezes a gol. Quando é que isso está incluído no futebol? Ninguém pode garantir: ok, você pode encher o pé cinco vezes num lance sem barreira, frente a frente com o goleiro, desde que você se submeta à mesma coisa. Isso não existe. O pior é que esse total pode ser estendido ao infinito, pois se o impasse se mantiver, é de direito fazer a alternância dos chutes entre os times, até acontecer alguma besteira.

Esse é o segundo aspecto: como pode haver um fundo infinito de possibilidades de chutes a gol?Vamos imaginar que dois times não consigam o desempate nos cinco primeiros chutes e fiquem eternamente disputando o campeonato batendo pênaltis. É escabroso imaginar uma coisa dessas. Não é futebol, como ia dizendo.

Há também o detalhe físico, de saúde humana. Ninguém consegue correr 120 minutos e depois decidir, com a calça e o coração na mão, a sua vida profissional diante de um batedor ou um goleiro que crescem em presença à medida que os milésimos de segundos escorrem. Vejam o caso do quase herói da noite de ontem, na decisão da Libertadores entre LDU e Fluminense, no Maracanã . Thiago Neves investiu toda sua concentração e energia no chute que não valeu, por que o malandro do goleiro Cevallos foi falar com o Juiz depois que o atacante tinha se retesado todo para o desfecho. Neves precisou repetir e acabou entregando a bola na mão do espertalhão.

Uma decisão por pênaltis pode fazer justiça, como foi o caso da copa de 94 ou mesmo no jogo de ontem, em que os equatorianos conseguiram seu primeiro título continental. Mas por natureza não pode fazer parte da justiça, pois está desvinculada do bem comum, da legitimação divina. Quantas vezes vemos grandes heróis do tempo normal serem jogados às chamas da danação numa decisão por pênaltis. É que um craque tem possibilidades de glória ou de sobrevivência em 90 ou 120 minutos. Na hora em que muda tudo, ou seja, quando começam a chutar os pênaltis, instala-se o caos.

Não se trata de loteria, como quer a crônica esportiva, tão ciosa de seus achados. Mas a crônica esportiva acredita em deuses dos estádios, então vamos relevar. Há lógica quântica numa loteria, mas numa decisão por pênaltis não. Ela foi forjada por quem não entende de futebol. É uma armação burocrática para distribuir taças e medalhas e não para as pessoas exercitarem o futebol ou torcerem por ele. Senão, como explicar que o mesmo goleiro Cevallos tenha repetido, no maior desplante, aquela mandinga de ficar de costas para o batedor?

É crime dar as costas para o adversário num lance que é o esplendor do frente a frente. Desvirtua a lógica, inverte o processo, corta o barato. Faz com que a perna trema, caia em desgraça, sucumba. O segundo seguinte a esse virar de costas do goleiro é de derrota suprema para o goleador. Quando você chuta um pênalti, você conta com a atenção total do goleiro e a perna obedece à necessidade de busca em meio ao paredão energético que esse olhar brutal desfere sobre a bola. Faz parte do futebol ter um goleiro na sua frente e não de costas.

No fundo, a decisão de um campeonato por pênaltis é uma espécie de vingança das leis que regem o jogo. Confinadas ao gramado, exaustas de tanto carrinho seguidos de mão levantadas (normal! normal!) , de tanto apito e bombas, as leis do futebol resolveram aprontar uma vingança. Se retiram do estádio e deixam que o mal tome conta. Notem que os jogadores se abraçam, desesperados, durante todo o tempo que dura a tortura. Não é por stress ou vontade de ganhar ou medo de perder. É porque a decisão por pênaltis é a barca de Caronte dos jogadores em conflito. Ela surge para levar as almas para o Outro lado. Dentro dela tem um barqueiro, a Acaso, que cobra uma moeda de prata para fazer a travessia. Você paga e embarca, morto de medo. Mas só se descobre acabado mesmo no dia seguinte, quando acorda e não é campeão.

RETORNO - Imagem de hoje: A Barca de Caronte - O Juízo Final, de Michelangelo.

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