2 de setembro de 2008

DUELO EM CAMPO ABERTO


Nei Duclós (*)

A síndrome do atraso empurrou o Brasil para a destruição sistemática dos próprios vestígios. Memória é considerada perda de tempo. É exatamente o contrário: é o tempo gasto, mas com vocação de eternidade. Não significa apenas lembrar, mas reconstituir, resgatar, recompor, revisitar. Jamais reproduzir, já que toda memória obedece à época em que é gerada.

É uma luta de faca em campo aberto, até o desenlace: puxamos o que se foi para sempre, para poder ver de perto a cara do passado. Desafiamos para um duelo o que está morto e enterrado. Depois, ou sucumbimos diante do inexorável (o que se perde jamais retorna) ou vencemos (retrabalhamos o acontecido até que se torne visível).

A equipe responsável pelo filme Netto e o domador de cavalos, escrito e dirigido por Tabajara Ruas, e apresentado recentemente no Festival de Gramado (RS), envolveu-se nessa luta, que refaz eventos numa nova teia. Mistura lenda (a do Negrinho do Pastoreio) com guerra (véspera da Revolução Farroupilha) e formação da nacionalidade (mestiços, negros, brancos e índios unidos contra a escravidão). Segunda obra de uma saga (a anterior, “Netto perde sua alma”, foi também escrita por Tabajara Ruas, que dividiu a direção com Beto Souza), o filme foi bem recebido pelo público, mas tratado com impaciência pela crítica e indiferença pelos jurados, que canalizaram a multidão de Kikitos para obras produzidas no Rio de Janeiro.

A reclamação recorrente é sobre a reiteração dos elementos que compõem a cinematografia do pampa, que não é tão antiga assim, já que os adventícios sempre se encarregaram de focar as lentes para o sul. A partir de Netto, uma nova iconografia foi revelada para a indústria audiovisual do Brasil, longe da visão retórica que se tinha da região. Os estúdios do centro do país fizeram a festa, levando desde atores e técnicos até diretores de batalhas, ave rara no cinema brasileiro ainda tão avesso aos seus mais importantes conflitos, os que definiram as fronteiras e o perfil do gigante.

“Mais do mesmo”, disseram, como se fosse pecado insistir no que nos define, como fazem os outros povos. É uma ilusão desistir do que sabemos fazer bem para negar o que somos. Virar as costas para a memória é entregar-se ao eterno presente, pegando carona na atual hegemonia da superficialidade. Mas no fundo há algo por trás dessa má vontade. São escassas as fontes de financiamento e é importante desqualificar gêneros, pois assim se pode navegar com mais tranqüilidade nas salas de captação de recursos. Isso serve para qualquer lugar onde não se consegue romper o cerco.

O filme representou no festival, segundo Werner Schünemann, ator que interpreta o general Netto, não apenas o Rio Grande do Sul, mas todos os outros estados que não compareceram na mostra competitiva. Longe de celebrarmos aqui o federalismo de fronteiras internas confundidas com limites de países opostos. O que está em pauta é a enorme dificuldade em se criar pólos regionais que se sustentem a longo prazo. Fica tudo a cargo de alguns abnegados, que se dedicam a esse esforço, em sintonia com a necessária diversidade cultural.

Abrimos mão da memória, diz o roteiro do republicano Netto em luta contra a monarquia. Podemos invocá-la por uma reza, para achar o que ficou escondido, como fazem os que acreditam no Negrinho do Pastoreio. Mas nenhuma oração substitui a guerra que precisamos fazer para tê-la junto de nós.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada nesta terça-feira, dia 2 de setembro de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense. 2. Imagem de hoje: Werner Schünemann, como o General Netto, e Tarcisio Filho, como Índio Torres: interpretações antológicas do cinema brasileiro. 3. Vi a versão final do filme "Netto e o domador de cavalos" em cópia especial enviada gentilmente por Ligia Walper e Tabajara Ruas.

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