10 de outubro de 2008

DÊ O CRÉDITO, GEORGE LUCAS


George Lucas é, com justa razão, tratado com a maior deferência pela imprensa e o mundo cinematográfico. Fez coisas incríveis e virou milionário graças ao seu talento e a noção que tem de mercado, ou seja, não se deixa levar por idéias prontas e com sua criatividade atrai milhões de pessoas em todo mundo, por décadas. Mas Lucas tem um defeito grave: não dá crédito para suas melhores sacadas. Em Star Wars, a essência é totalmente fundada nos livros de Carlos Castaneda. O Yoda como Don Juan, a Força como o nagual, o jedi como o guerreiro impecável, tudo conflui para Castaneda. Em Indiana Jones 4, a mesma coisa: o roteirista Lucas (a direção é de Steven Spielberg) tirou o principal de Erick Van Daniken, do best-seller Eram os Deus Astronautas. Alguém citou Daniken? Nem George Lucas.

Daniken é o cara que tentou provar a origem interplanetária dos deuses dos povos pré-colombianos (não que eu concorde com isso, mas foi ele que inventou esse troço). Lucas convenceu Spielberg que os seres poderosos em questão (que tinham como tesouro o conhecimento e não o ouro, outra chupada de Castaneda) não eram de outros planetas, mas de outras dimensões. Conversa mole. Os sujeitos em questão possuem aquela cabeça ovalada do ET de Steve e são baseadas nos crânios dos maias, que deformavam a cabeça das crianças para agradar os deuses. São seres de outros planetas, tanto é que voltam para o lugar de origem num disco voador tradicional, daqueles do cinema dos anos 50, claro que superdimensionado.

Com os recursos da computação gráfica, os filmes de ficção e ação não passam de desenhos animados ou de videogames. Nos Extras do DVD recém lançado, Spielberg diz que fizeram o filme baseado numa mixagem: seriados dos anos 30 e 40 em forma de um filme ambientado nos anos 50. Steve tem exatamente a minha idade. O que ele viu na infância e juventude aconteceu com toda nossa geração. Indiana Jones á a mistura dos seriados com o filme principal, que vinha logo depois, e que eram, claro, dos anos 50, contemporâneos. Ou seja, ele quis fazer um filme com a graça do seriado (que vinha antes do filme) com o carisma do filme principal.

Mas há um agravante: Indiana Jones é um herói a serviço do Império e mantém a escrita da guerra fria, onde Lucas e Steve foram criados. Desta vez, os inimigos que contam são os russos, já que os peruanos não são de nada. A chegada de Jones e o filho no Peru, cercados por galinhas num aeroporto deserto, diz tudo da imagem que o cinema americano impõe como regra. Para eles, os hispânicos (ou seja, nós) são uns convardes (chickens), já que levamos (nós, quem cara pálida?) um pau na guerra da Espanha contra os Estados Unidos na disputa por Cuba e na tunga de metade do território do México.

Quem são os americanos segundo o cinema dos Estados Unidos? Um grupo de pessoas, uma turma, sem raízes, que debocham da ancestralidade de outros povos e continentes. Indiana Jones é a flor do deboche. O desprezo pela paisagem (jipões que destroem tocas de pequenos marsupiais), a identificação da natureza com o perigo que precisa ser detonado ou evitado, e que guarda segredos que devem ser virados pelo avesso, tudo isso faz parte da cultura predatória americana. Não é por nada que o herói usa um chicote. Sabemos o que o chicote significa num sistema escravista. O foco na Amazônia também diz muito sobre a estratégia americana, que depois do pau que está levando no Oriente Médio quer vir aqui brigar um pouco, chicotear esses hispânicos.

No fundo, roubar um brasileiro (Castaneda) ou um suíço (Daniken) faz parte dessa mentalidade de apropriação indébita do mundo todo. Indiana Jones 4 é cheio de referências cinematográficas, desde O Selvagem, com Marlon Brando, até o próprio ET, de Spielberg. Homenagear é uma coisa, ótima. Chupar idéias e não dar o crédito, outra, grave. É sintomático o conselho dado pelo professor de arqueologia aos alunos concentrados na Biblioteca: aprendam fora daqui, diz ele, ou seja, arqueologia está na pesquisa de campo, não na teoria. Claro, fica mais fácil se dirigir a um público ágrafo, sem a base da leitura. Em compensação, o papai Indiana quer que o filho volte às aulas. Abandonar os estudos é para os pobres, os consumidores. Elite, composta pelos que produzem pensamento, precisa dos títulos.

Não que Lucas e Sipielberg devam ser tratados aos pontapés por cometerem esses erros. Os dois são gênios e nos encantam há décadas. Mas é bom saber exatamente o que eles são e o mundo ao qual pertencem. Senão correremos o risco de ser vítimas do plano maquiavélico da russa paranormal interpretada por Cate Blanchet (eliminada totalmente dos Extras, junto com o magnífico John Hurt, por que será?), em que o poder imperial nos domina totalmente e pensa por nós, enquanto a gente nem sabe o que está acontecendo. Nesse plano, as vítimas acham que estão tendo pensamentos originais. Mas é tudo plantado.

RETORNO - Imagem de hoje: Harrison Ford, carismático e em forma, em "Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal".

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