25 de dezembro de 2008

BOAS INTENÇÕES


Nei Duclós
(*)

Vamos chamar de discurso as promessas da virada do ano. E de vida o que fazemos depois. O divórcio entre discurso e vida é um lugar comum, que contamina de compromissos não cumpridos a época das Festas. E que vira fonte de ressacas extremas de autopunição. Não tem saída, pois essa defasagem entre palavra dada e gesto real é maior e mais profundo do que percebemos.

As palavras assumiram o lugar dos fatos e não vivemos mais num ambiente tradicional, como casa, família, emprego, mas num mundo artificial regido pelo verbo: beba, coma, compre, voe, ame, sorria, chore, pule. Não há mais vida, nem pessoas, e sim suas representações: o paizão margarina, a mamãe xampu, o espertinho ao volante, o pensador contratado, o milionário bondoso, o estadista ágrafo, o casamento vitrine, a solidariedade datada. Não podemos mudar, sob pena de cairmos no poço da exclusão. Quem se marginaliza por opção, para fugir do "sistema", acaba posando para as câmaras: volta ao universo do discurso, pois é preciso que seu gesto seja difundido, sob pena de não existir.

O discurso assume a responsabilidade, mas ele não é confiável por natureza, já que a enunciação das medidas saudáveis substitui as ações. É uma espécie de terceirização. É deixado nas mãos das palavras o esforço que caberia ao devoto da nova fase. Há inclusive uma adequação pressionada pelo tempo. Como a vontade se desmoraliza com as sucessivas traições, aos poucos as promessas se tornam mais viáveis, em tese. Mas o hábito da desistência acaba fortalecendo a impermeabilidade do novo juramento, por mais raso que seja.

É difícil, mas proveitoso, romper esse laço entre o dito e o feito e entregar-se ao que realmente for possível, na hora certa. Livrar Natal e Ano Novo das listas das decisões é deixar de tomar as pílulas pseudo-religiosas ou pretensamente filosóficas do bem viver, pragas da indústria do aconselhamento. Não acredite, por exemplo, que toda crise encerra uma oportunidade. Desconfie de ideograma chinês, ou do horóscopo chinês. O ano do búfalo pode ser da serpente. Vai lá saber. O Tempo não tem boas intenções.

RETORNO - 1. (*) Crônica publicada no caderno Variedades da edição de 23 de dezembro de 2008 do Diário Catarinense. 2. Imagem deste post: Navegantes, mais uma estupenda foto de Sérgio Saraiva.

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