13 de dezembro de 2008

A CHAMA E A SOMBRA


Nei Duclós

Pode ser coincidência, mas o significado do nome próprio dinamarquês Citronen pode ser, graças a uma variação etimológica, o mesmo da palavra francesa Citröen: “todos por um”, segundo especialistas em sânscrito. Citronen é o nome de um herói da Dinamarca da Segunda Guerra. Junto com Flammen (chama), fez parte de uma equipe de resistência ao nazismo, eliminando colaboradores no país ocupado. O recente filme Flammen & Citronen (2008), de Ole Cristhian Madsen, é uma revisita ao mito que se formou ao redor dessa dupla de matadores, enterrados com honras depois da derrota alemã, quando foram retirados de uma vala comum para serem colocados no panteon dos heróis da pátria.

O filme é uma apurada sucessão de imagens de alta intensidade visual e dramática. As cores carregadas em contrastes gritantes fazem dele um noir do século 21: lâmpadas fortes sobre escrivaninhas minuciosamente produzidas, paisagens maravilhosas de céu, mar e grama que duelam com automóveis de cores berrantes, Estocolmo e Copenhagen esplendorosas na sua frieza incendiada pela ação e personagens sinistros em armadilhas mortais fazem desse lançamento internacional um acontecimento importante, mesmo quem seja considerado longo demais, confuso muitas vezes e com situações forçadas em algumas partes.

O que vale é essa atualização do imaginário do país. A ultra-sofisticada e culta Dinamarca não poderia produzir um panegírico, já que se trata de uma democracia de verdade e lá houve uma guerra ferocíssima que marcou a população. A abordagem é sobre a omissão diante da humilhação, a necessidade de reagir, mas como? Os dois heróis se prestam ao jogo dos assassinatos, apesar de Flammen (interpretado por Thure Lindhardt) ser um brilhante aluno e Citronen (Mads Mikkelsen) um pai de família incapaz de matar uma pessoa. As contingências empurram os dois idealistas para o crime. Esse idealismo – a chama segurada pela sombra, a ação carregada pela idéia de nação, o tiro amparado pela resistência – é que faz reviver o heroísmo.

Eles podem ainda ser lembrados de maneira solene, apesar de terem caído em todas as arapucas, matado inocentes sem saber, se prestarem a um serviço sujo enquanto os facínoras do serviço secreto inglês, entre outros comerciantes, dividiam os lucros. Os campos se confundem na luta desigual entre a individualidade e a corporação. A dúvida é encarnada na figura da mulher (a personagem Ketty Selmer, interpretada por Stine Stengade), a agente dupla que acaba delatando o amante procurado a peso de ouro. A traição feminina e a solidariedade encarnada pela dupla masculina são recorrentes no cinema europeu e americano. Como a confirmar a função de Eva seduzida pela serpente e o trouxa que acaba provando a maçã envenenada. Mas esse lugar comum não tira o mérito do filme.

Citronen usa capa preta, chapéu escuro enterrado na testa, enquanto o cabelo loiro de Flamme navega pelos corredores e ruas, armado de chispas de uma revolução que ficou inacabada. A chama e a sombra convivem com seus equívocos até o fim, sem conseguir mudar nada. O objetivo era matar todo nazista que tivesse invadido a Dinamarca e seus colaboradores. O projeto não deu certo. Os heróis se enredaram na própria cegueira diante da complexidade do conflito. Isso é recuperado de maneira poderosa pelo cineasta Madsen, que foca o heroísmo possível nesta época de transparências.

Não cabem mais na cultura de hoje heróis vistos como antigamente, impolutos, sem nenhuma mancha, sem sua natureza humana, escassa e precária. Ao mesmo tempo, não podemos sucumbir ao jogo de achincalhes diante dos que arriscaram a vida em nome de uma idéia fundamental da sobrevivência, a nação.

Longa vida aos heróis da pátria. Mesmo com todos os defeitos, eles se destacam no mundo com sua natureza dupla, entre iluminação e a névoa, entre o ideal e a prática, entre a certeza e a dúvida.

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