7 de janeiro de 2009

HIROSHIMA, O AMOR DA MEMÓRIA


Nei Duclós

O amor pode perdoar sem esquecer, nos diz o diretor Alain Resnais e a roteirista Marguerite Duras no filme fundamental de 1959, Hiroshima, mon amour. É, como todos, um filme sobre cinema: a mulher francesa participa de um documentário sobre a necessidade da paz depois da hecatombe nuclear, mas ela mesma é a protagonista do filme que estamos vendo, e que vai mais fundo do que os falsos apelos pacifistas, já que joga pesado com a necessidade real de convívio depois do massacre e a única saída para isso é resgatar o amor perdido e abrir-se para uma nova relação.

Ela precisa ficar em dia com uma dívida com o passado. Tinha soterrado na memória o episódio em que amou um soldado alemão na Segunda Guerra, em plena França ocupada e por isso foi punida com o encarceramento e a loucura. Por ter essa ferida aberta dentro de si, tornou-se incapaz de amar. O encontro com um arquiteto japonês, que tem tudo para ser um momento descartável de sexo, se transforma numa sessão psicanalítica, em que o amante/doutor encarna o personagem assassinado, o soldado alemão, e faz com que ela recupera cada instante do desejo que enfrentou barreiras e preconceitos e jogou-a na condenação por parte dos seus conterrâneos.

Não se pode falar em paz se existe retaliação. Todo apelo para o fim das guerras e conflitos cai no vazio se ódio continua comandando o espetáculo depois do cessar fogo. Nevers, a cidade onde aconteceu o amor proibido entre a francesa e o soldado alemão, é como a mítica Paris, Texas, de Wim Wenders, o lugar terminal de uma peregrinação rumo à auto-descoberta. Algo existe lá, pulsando e que está oculto e confuso, pois o tempo, o medo e o sofrimento cuidaram para colocar uma nebulosa em cima. O sofredor, a vítima procura o caminho de reconciliação com essa presença perdida e para isso conta com a ajuda de quem o cerca. No caso da personagem de Resnais, ela tem no amante japonês o guia em direção a esse vulcão de dor e ressentimento.

Quando a memória é capaz de amar, ou seja, quando recuperamos o amor perdido, por mais sofrimento que ele tenha desencadeado, estaremos prontos para uma reconciliação com os sentimentos. Não viveremos em paz se não existir esse amor recuperado, esse mergulho no tempo sofrido e a coragem de assumir a chance que se apresenta mais uma vez. No filme, o casal roda por Hiroshima, pois não estão certos de que ficar juntos seria a melhor solução. Ao mesmo tempo, não conseguem se desgrudar um do outro, como se houvesse uma missão a cumprir, como se trair novamente aquela oportunidade de amar fosse a real tragédia humana. Podem cair mil bombas sobre todas as cidades do mundo que nem tudo estará perdido se houver condição de duas pessoas se amarem.

Eis o cinema que civiliza, humaniza, torna o coração humano um lugar habitável. Da mesma forma que Nevers, o filme Hiroshima mon amour também sofre com o esquecimento. Se vimos há tempos, se nem vimos ou se vemos e não entendemos o que significa, então é porque Hiroshima, o amor proibido da memória continua lá, enterrado. Precisamos trazê-lo à tona novamente. E mostrar como pode existir um cinema que está à altura das maiores obras da literatura, um filme que justifica a existência da Sétima Arte como manifestação suprema do talento humano.

Cruzamos a madrugada insone e o sol está alto, e não sabemos se embarcamos numa viagem sem volta para esquecer tudo ou ficamos em Hiroshima, nosso amor. Vamos permanecer aqui, nessa dor que continua intensa, nessa paixão que renasce, nesse lugar feito para o abraço, o encontro, o coração capaz de superar qualquer violência. É nossa única salvação.

RETORNO - Imagem desta edição: Emmanuelle Riva e Eiji Okada num filme inesquecível.

Nenhum comentário:

Postar um comentário