21 de fevereiro de 2009

O ADEUS DE CLÁUDIO FAVIERE (1948-2009)


O amigo jornalista Paulo Paiva Nogueira manda um e-mail de Brasília: Recebi com muita tristeza a notícia do passamento, nesta sexta-feira, dia 20, do grande amigo Cláudio Faviere. Jornalista dos bons, com passagem pela grande imprensa e na combativa imprensa alternativa dos anos de 1970, o conheci na Folha de São Paulo, nos anos 80, quando o jornal era ainda uma referência na imprensa brasileira, em termos de credibilidade. O Cláudio ganhou prêmios (entre eles o Vladimir Herzog), mas nos anos 90, acho que antevendo os rumos do jornalismo brasileiro, comprou uma pequena propriedade em Cunha, SP, num lugar mágico, com mata atlântica e várias cachoeiras, e o tornou ainda mais mágico.”

Cláudio Faviere tinha 60 anos, exatamente a minha idade. Somos do mesmo ano, passamos pelas mesmas redações, onde eventualmente nos encontramos. Desencantou-se com a profissão quase na mesma época. Internou-se num lugar ermo, como eu. Viveu algum tempo de indenização, como aconteceu comigo. Investiu tudo o que tinha no lugar que escolheu para viver, coisa que também fiz.

Por isso, o texto dele, que só descobri agora, sobre essa experiência, me tocou profundamente. É de partir o coração, nesta nação que joga fora seus talentos, novos e veteranos, e nos empurra para lugares remotos, quando deveríamos estar no miolo da guerra, contribuindo para o país. O fato é que a ditadura não acaba e dá sinais de longevidade acima das forças de qualquer um. Vamos a Favieri e seu texto antológico.

NO DIA EM QUE EU VIM ME EMBORA

Claudio Faviere

Não tinha nada demais. Tinha o vento a favor. Havia comprado o sítio em Cunha sem que tivesse planejado comprar sítio, construído a casa sem que estivesse nos planos mudar de cidade. Tudo aconteceu sem planejamentos e intenções. Coisas do destino ou sabe-se lá do que. Era 1993. Dois anos depois, ao sair do último emprego, sentia um grande desencanto com o jornalismo, do que jeito que passara a ser praticado. Morte da reportagem, imprensa oficialesca, sem investigação e denúncia, império do release, matérias feitas em série como em uma fábrica de salsichas, visões áridas, estatísticas, sem contemplação do ser humano.

No período entre a compra do sítio e a saída do emprego mesclava o trabalho em São Paulo com a construção da casa, nas rápidas viagens de fim de semana a Cunha. Nas conversas de bares na pequena cidade ou nos humildes armazéns da zona rural, nas visitas às casas e nos passeios aos pequenos vilarejos da roça, o contato com novas realidades, novos cenários, novas pessoas. E a descoberta de novas histórias, de uma nova cultura, de um novo e prazeroso relacionamento com os moradores. Tudo em contraste relevante com a metrópole, onde nasci, vivi, trabalhei. O fascínio por tudo isto era grande. Destes contatos e histórias surgiu a vontade de uma nova experiência: escrever um romance ambientado naquela realidade, a primeira entrada no mundo da ficção. Fazia quase 30 anos que praticava o exercício de escrever, mas sempre em cima de fatos e acontecimentos.

Somando tudo: desencanto com o jornalismo, a saída do último emprego, um dinheirinho no bolso, a casa semipronta (mas já em condições de morar), as primeiras linhas do romance se delineando nos breves intervalos do cotidiano de São Paulo. Pronto. Lá vou eu. Bye-bye tudo.

E vim me embora com o projeto de passar um ano com dedicação exclusiva ao romance. O dinheirinho dos direitos trabalhistas não era muito, mas o suficiente para não ter outra preocupação do que viver plenamente a experiência da liberdade proporcionada pela literatura. E aqui no sítio tudo era a favor: as cachoeiras rodeando a casa, a mata, o silêncio, o sagrado isolamento, as montanhas, o céu que chega a dar um porre de azul. Só uma coisa não foi a favor: a realidade. O dinheiro acabou, parei o romance quase concluído, fui atrás da sobrevivência, retomei o romance, parei novamente, fui atrás da sobrevivência.

Em 2000, recebi uma pequena herança e construí uma pousada com o claro objetivo de ela não ser um fim, mas o meio através do qual fosse possível atingir o objetivo maior: ler e escrever. Passaram-se quase cinco anos de trabalho árduo para que a pousada se estruturasse, ficasse conhecida, possibilitasse a sobrevivência e, enfim, eu alcançasse a paz e tranqüilidade para terminar o romance.

Penso que assim como o destino me trouxe para cá e me privilegiou com um pedacinho de terra tão sagrado (sem que eu houvesse planejado ou pretendido), o mesmo destino designou a hora certa para concluir este sonho de liberdade. Era inexorável e foi agora. O livro chama-se "Na Cacunda do Lagarto" e só falta um pequeno detalhe: editá-lo. Vamos ver. Mas os percalços desta batalha nunca me tiraram a felicidade de estar aqui, mais perto da vivência do que da sobrevivência.

Nota:
O título deste artigo e a primeira frase são de uma música de Caetano Veloso.

RETORNO - 1. Imagem de hoje: Cláudio Faviere, livros e cachoeiras. 2. Atenção para os créditos, no caso de alguém difundir estas informações pela rede: o que está entre aspas é de outros autores. Ou seja, o primeiro parágrafo é do Paulo Paiva e todo o texto depois do título "No dia em que eu vim me embora" é do Cláudio Favieri. E os dois parágrafos sem aspas existentes entre o primeiro parágrafo, em itálico e o texto de Cláudio, são meus. Muita atenção, para não haver confusão.

4 comentários:

  1. Anônimo12:13 AM

    Na cacunda do lagarto.

    Um lagarto relâmpago relampejo,
    de cores e amores rastejantes,
    que empoeirava caminho,
    saracoteou na frente de Claudinho.
    Claudinho esfoliador de letras encomendadas,
    das laudas prontas como fabrica de salsichas,
    nem pensou e num instante grudou lagarto
    passante como passageiro errante.
    Na Cacunda do Lagarto misturou o seu destino,
    fundiram perna corpo intestino,
    os rabos emendaram e inventavam no caminho.
    Na Cacunda do Lagarto ia Claudinho,
    feito vaqueiro na caatinga,
    no galope pra o Vale das
    Cachoeiras de Cunha, no Valar do espinho.
    No vale valores viraram tambores
    antes rugidos intrinsecamente,
    agora com Claudinho Na Cacunda do Lagarto
    tambor soava com alarde valente.
    Tudo Claudinho fazia Na Cacunda do Lagarto,
    comia cedo jantava, dormia tarde cedo acordava,
    escrevia livro e poetizava, rabiscava o passado
    e o futuro fumegava.
    O lagarto tirou o tarugo da cidade e jogou pro sertão,
    deu lhe vida de lagarto a serpentear no chão.
    Agora lagarto foi pra um lado e Claudinho foi pro outro,
    diametralmente opostos, profundamente indigestos,
    antecipadamente insólitos.
    Tirar Claudinho da cacunda do lagarto é o mesmo
    que tirar lagarto da cacunda do Claudinho,
    que coisa mais antiga é a morte,
    que coisa mais tardia é a vida.
     

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    1. Anônimo10:59 PM

      Meu nome é Marcos Rossi e isto é apenas uma pequena homenagem e reconhecimento pelas vezes que o Claudinho nos recebeu em sua pousada. Obrigado por ter publicado.
      abraço

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    2. Parabéns, Marcos. Belo poema. Pessoas importantes da nossa vida são cultivadas pela nossa memória.

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